Já disponível nas livrarias portuguesa, a Nova Gramática do Latim, da autoria do professor universitário Frederico Lourenço, tradutor mais conhecido pela versão portuguesa a partir do grego de Homero e da Bíblia (Septuaginta). São 512 páginas em que o autor – entrevistado pelo jornalista e escritor João Céu e Silva [in Diário de Notícias, de 16/03/2019] – considera-a «diferente das anteriores [gramáticas] publicadas em Portugal» e que se destina principalmente a «quem trabalha em áreas em que o conhecimento do latim é imprescindível»: arqueologia, história antiga e medieval, filosofia, teologia e linguística portuguesa. Apologista de que o latim deve ser ensinado na escola, de forma lúdica mas progressiva, a partir dos 10 anos, Frederico Lourenço admira-se que haja entre nós investigadores e professores dessas áreas que sabem pouco ou nenhum latim».
Com a devida vénia, transcrevemos de seguida o essencial das sua declarações.
Há uma questão incontornável para quem acompanha o seu trabalho. Como encontra tempo para escrever tantas centenas de páginas?
O tempo é uma conquista consciente da minha parte. Só consigo fazer os trabalhos que faço porque abdico de muitas outras coisas. Não é só abdicar de atividades de lazer, é abdicar também de todos os convites que recebo para conferências, para deslocações internacionais e para júris universitários. Tomei a opção de fazer aquilo que considero o "meu" trabalho, não só porque o considero mais importante do que outras atividades a que me poderia dedicar, mas também porque me dá gosto fazê-lo.
Ainda vai na oitava linha e critica as "metodologias do tempo da ditadura de Salazar". O governante foi um "mal" para o latim?
Foi, embora de forma paradoxal, na medida em que as línguas clássicas beneficiaram de bastante protecionismo no tempo do Estado Novo. A fatura desse protecionismo foi paga a seguir ao 25 de Abril de 1974, com a sanha com que se procedeu à desmontagem da legislação e dos planos de estudos que impunham o latim e o grego como obrigatórios. Para a esquerda académica que pôde soltar a voz depois da Revolução, o latim e o grego representavam algo de retrógrado. Também é preciso pensar quem eram as grandes figuras dos Estudos Clássicos antes do 25 de Abril (em Coimbra, Costa Ramalho e Rocha Pereira; em Lisboa, Ureña Prieto e Rosado Fernandes). Eram figuras conservadoras, que chegaram sem obstáculos políticos ao topo da carreira antes da Revolução.
No mesmo Preambulum considera que são muitas as pessoas que gostariam de saber esta língua. Essa é mesma a realidade nacional?
Refiro-me a pessoas que, na vida universitária, trabalham em áreas em que o conhecimento do latim é objetivamente imprescindível: arqueologia, história antiga e medieval, filosofia, teologia, linguística portuguesa. Nunca deixa de me surpreender que haja entre nós investigadores e professores dessas áreas que sabem pouco ou nenhum latim.
Pretende com esta Nova Gramática "sistematizar de forma desempoeirada" uma língua morta?
A etiqueta de "língua morta" é muito discutível. Mortas estão as línguas que eram faladas no que é hoje território português antes de os romanos terem conquistado a Península Ibérica. O latim trazido pelos romanos continua vivo, visto que o português, o espanhol, o italiano e o francês (para dar só estes quatro exemplos) constituem, na realidade, formas de latim faladas hoje por quase mil milhões de pessoas. Não falamos, atualmente, o latim do tempo de Cícero, mas sim o resultado da evolução dessa língua. Uma das intenções da minha Gramática é chamar a atenção para o elo inquebrantável entre o latim e o português.
Em que difere esta gramática daquelas que existem disponíveis?
É diferente das anteriores publicadas em Portugal porque aposta na explicação histórica dos fenómenos morfológicos, ao mesmo tempo que pretende ser mais sintética no que toca à explicação da sintaxe. Tentei explicar o porquê da complexidade morfológica dos substantivos, dos verbos e dos pronomes, com base na história da língua latina desde as inscrições republicanas mais antigas até ao latim da época cristã. Quanto à sintaxe, evitei amontoar informação confusa e redundante, optando em vez disso por oferecer uma explicação clara e sintética do funcionamento real das frases em latim.
Considera necessário aos falantes de línguas clássicas o domínio de um grande vocabulário. Essa não é também uma dificuldade nas que se falam atualmente?
Sim, a aquisição de vocabulário é a tarefa mais importante na aprendizagem de uma língua, seja ela clássica ou moderna, depois de entendidas as estruturas básicas da morfologia e da sintaxe. Esse esforço consciente de aprendizagem do vocabulário do latim é ainda mais importante no contexto atual, porque as pessoas começam, na maior parte dos casos, a aprender latim já adultas, numa fase do desenvolvimento do cérebro humano em que já não se consegue aprender vocabulário quase por osmose, como é possível aos 10 anos. Por isso sou apologista de que o latim deve ser ensinado na escola, de forma lúdica mas progressiva, a partir dos 10 anos.
Acredita que daqui a algumas gerações esta Nova Gramática tenha produzido resultados?
Tenho esperança de que possa dar a muita gente uma porta de entrada para o estudo das línguas clássicas. Não é só uma gramática, é também um livro acerca da língua latina, da sua história e da sua beleza. É um livro de pretende mostrar às pessoas porque é que o latim é importante na formação não só escolar e universitária, mas cultural também.
Esta gramática tem direito a palavrões. Só assim ficaria completa?
A minha intenção é oferecer uma imagem realista do latim, dos seus diferentes níveis de língua. O espaço dado a frases contendo palavrões é ínfimo, mas entendi que esse registo de linguagem devia estar presente, para mostrar que o latim é uma língua em que tudo se pode exprimir, desde os palavrões mais crus até aos pensamentos mais sublimes. É a língua de Vergílio e da Vulgata, sim; mas é também a língua de grafitos obscenos escritos nas paredes por pessoas que davam os mais delirantes erros de ortografia.
Comenta as subtilezas de Tácito e como esse estilo se torna "quase indigente" ao ser traduzido. É o que justifica a aprendizagem de uma língua como o latim?
Um dos grandes argumentos para se aprender latim é que o verdadeiro sentido dos grandes autores latinos é indissociável das palavras latinas por eles usadas. Pessoalmente, sempre me dei conta de uma certa frustração ao tentar traduzir literatura latina para português, porque parece que toda a beleza literária do original se evapora no processo de tradução.
Porque deixou o latim de ser falado como língua materna e não se perdeu?
Houve vários fatores que explicam a sobrevivência do latim. O principal foi o facto de o latim ter sido, até ao século XX, a língua da Igreja Católica. Nunca é de mais sublinhar a importância do contributo da Igreja para a sobrevivência do latim. É preciso não esquecer que durante séculos a liturgia foi em latim e a Bíblia só podia ser lida em latim. Depois, a qualidade e a quantidade de textos em latim tanto da Antiguidade pagã como do período cristão fizeram do conhecimento do latim algo de incontornável. Hoje é possível a quem não saiba latim ler uma parte significativa destes textos em tradução, mas em séculos anteriores isso não era possível. Quem quisesse ler os mais de 200 volumes da Patrologia Latina tinha mesmo de saber latim.
Que benefícios teve a literatura portuguesa do latim?
De forma direta, há a mencionar toda a literatura escrita em latim por autores portugueses entre os séculos XVI e XVIII. Existe a obra do Padre António Vieira escrita em português, mas há também a obra que ele escreveu em latim. Existe poesia, teatro e escrita ensaística em latim, produzida pelos nossos humanistas, em cuja divulgação os meus colegas da Faculdade de Letras de Coimbra se têm empenhado, há várias gerações. De forma indireta, o latim e a sua grande poesia estão presentes em quase cada verso de Os Lusíadas, poema cuja textura linguística mostra a competência de Camões como latinista.
Refere a questão das várias pronúncias. Como se encontrou aquela que se ensina, por ser a que se pensa ser mais aproximada?
A pronúncia que atualmente se privilegia nas grandes universidades internacionais é a pronúncia que se pensa ser a mais aproximada da que seria natural entre as classes cultas entre o final da República e o início do Império. As bases em que essa pronúncia assenta são explicadas por mim na [Nova] Gramática. O importante é seguir uma opção coerente. Não me parece coerente lermos em voz alta a poesia de Vergílio usando a pronúncia eclesiástica do latim, pois isso é anacrónico. Mas também é legítimo perguntarmos se é coerente lermos textos mais tardios com a pronúncia do tempo de Júlio César e de Augusto. [...]
Cf. Frederico Lourenço: «Acho que o grego tornou-se uma espécie de droga para mim»
Entrevista publicada no jornal Diário de Notícias em 16/03/2019.