«[...] não precisa fazer das tripas (khordé) coração (cordis) para penetrar no reino das palavras e resgatar seus significados ocultos. É só consultar um dicionário. [...]»
Uma influenciadora digital fez recentemente uma postagem etimológico-motivacional, na qual se limitava a dizer:
«COR – coração / AGEM – agir / Coragem!!! Aja com o coração».
Muita gente (eu, inclusive) se divertiu à beça com as possibilidades que esse tipo de etimologia expressa, ou free style, oferece.
Etimologia, longe de ser o estudo (logos) do que é verdadeiro (etymon), poderia ser decomposta em ETI (de Etti, marca de ervilha em lata) + MO (que mói) + LO (bolo de massa fofa) + GIA (rãzinha semianalfabeta, que troca o J pelo G), significando... bem, significando que o estudo da origem das palavras não é bem assim.
A moça estava até certa. Coragem tem a mesma raiz de coração: cor, cordis. Que é também de onde vieram acordo, concórdia, concordar (estar em harmonia, com os corações juntos), recordar (trazer de volta ao coração).
Mas nem tudo com cor no meio tem a ver com algo cardíaco (palavra que, por sinal, vem direto do grego kardia – e é por isso que fazemos cardiograma, não corgrama ou coraçãograma).
Decorar, no sentido de «guardar de memória», sim. Os antigos achavam que o coração era a sede da memória (daí «saber de cor» = saber de coração). Já decorar, na acepção de enfeitar, vem de decus (enfeite).
Nem condecoração, aquele pedacinho de latão espetado na lapela, normalmente no lado esquerdo do peito, tem a ver com aurículas e ventrículos. A origem é a mesma de decoro (decência). Condecorar é honrar, homenagear. De coração ou por conveniência, tanto faz.
A moça também não estava errada em dizer que “agem” tem a ver com agir. Tem, mas não só.
A terminação grega ατικός (pronuncia-se “aticós”) originou o sufixo latino ātĭcum, que deu em ádego e, depois, em agem – exprimindo (entre outros) aglomeração ou ação.
Daí nasceram voragem (de vorāgo, turbilhão), imagem (de imāgo, ideia, recordação) e linguagem, linhagem, personagem, carceragem, bagagem, vantagem, plumagem, mensagem, malandragem, selvagem...
Plumagem, por exemplo, não são plumas em ação, mas uma (digamos) aglomeração de plumas.
Voltando à técnica de “etimologia selvagem” aplicada a coração pela influêncer (que, segundo soube, apagou a postagem — olha o “agem” aí de novo!), pensemos em cordão.
Por mais que seja um ornamento dado de coração, não vem de "cor” (coração) + “dão” (do verbo dar). Em que pese o “ão”, o cordão é uma cordinha (vem do francês cordon). E corda tem origem no grego khordé (tripa de animal).
Logo, não precisa fazer das tripas (khordé) coração (cordis) para penetrar no reino das palavras e resgatar seus significados ocultos. É só consultar um dicionário – palavra que não, não vem de DI (princesa morta num acidente) + CIO (tesão) + NA (sódio, causador de hipertensão) + RIO (cidade maravilhosa, cheia de encantos mil), significando... bem, você pegou o espírito da coisa.
Apontamento do escritor brasileiro Eduardo Affonso publicado em 9 de janeiro de 2022 no mural Língua e Tradição, no Facebook.