«(...) Os nacional-lusitanistas – os que nutrem uma filia imensuravelmente desvairada e, na maioria das vezes cientificamente infundada, à cultura e língua portuguesas, que até causa ciúmes a um Camões – teimam que o futuro e o progresso de Cabo Verde passam única e essencialmente pela via da língua portuguesa (embora a história tem mostrado não ser bem assim). (...)»
Fanon [1925-1961], brilhante teórico martinicano do pós-colonialismo, mostrou, nos idos anos cinquenta, que o problema colonial se manifestava, sobretudo, a nível mental. O alienado colonial, submergido no discurso colonial, vivenciando, assim, o mito da caverna de Platão, não consegue, de maneira alguma, entender o dano mental que lhe é causado. Sujeita-se, assim, a ser um ser mimético, assumindo a cultura do colonizador como a medida de todas as coisas. Muitos, ainda acorrentados (em pleno 2021!) ao discurso colonial, acreditam, cegamente diga-se, que falar português não só constitui uma marca de modernidade como também demonstra a civilização do falante. A noção de que o português forma, na sua essência, uma língua de modernidade, um atalho para o progresso, tem mostrado ser um dos mais persistentes e perenes mitos alguma vez construídos pelo Estado colonial.
Ondina Ferreira, num artigo de opinião publicado no Expresso das Ilhas de 13 de dezembro, escreve que o português em Cabo Verde se encontra sob ameaças e sugere que o progresso cientifico-filosófico de Cabo Verde realizar-se-á unicamente pela via da língua portuguesa. Importa distinguir, para o bem do debate, entre conteúdo académico (conhecimento) e veículo de transmissão de conhecimento. O conhecimento não tem língua! Quem realmente sabe consegue reproduzir tal conhecimento em qualquer língua que domine. É certo que algumas línguas têm mais tradição de uso em certos domínios. E como é sabido (ou pelo menos, os mais curiosos devem sabê-lo) a tradição de uso de certas línguas em certos domínios, mormente nos domínios de poder e prestígio, teve sempre o suporte da mão de ferro do Estado. Assim, por exemplo, o francês tornou a língua de ensino menos por causa de qualquer característica inerente dessa língua do que a imposição do Estado, fenómeno esse chamado de vergonha entre os falantes de lenga d’òc do sul da França. A ideia que o conhecimento só pode ser veiculado através de certas línguas não só é exclusionária como também é redutiva e simplicista.
A linguística contemporânea nos ensina que qualquer língua poderá cumprir com qualquer função social, incluindo as funções ditas da modernidade socioeconómica e política, desde que passe por um processo racional de planeamento linguístico, mormente no seu corpus. Há cem anos atrás, por exemplo, o afrikaans constituía uma língua oral sem qualquer ordenamento ortográfico. Foi o nacionalismo bóer, sustentado pelo Estado, que permitiu que em poucas décadas se verifique um salto quântico dessa língua. Hoje, ninguém duvida das qualidades dessa língua enquanto veículo de comunicação em qualquer domínio. Da mesma maneira, até os inícios dos anos cinquenta, o hebraico não passava do que uma língua morta, usada unicamente em rituais religiosos judaicos. Se o hebraico moderno constitui uma língua de ciência, filosofia, e tecnologia teve muito a ver com uma política linguística concertada do Estado de Israel que permitiu a modernização dessa língua. Poderia citar um grande número de casos de exemplos, na Europa, África e outra parte do mundo, que nos últimos cem anos a política linguística, sustentada por um nacionalismo linguístico, permitiu a modernização da língua da nação. Diria um Fernando Pessoa que «tudo vale a pena se a alma não é pequena.»
No entanto, os nacional-lusitanistas – os que nutrem uma filia imensuravelmente desvairada e, na maioria das vezes cientificamente infundada, à cultura e língua portuguesas, que até causa ciúmes a um Camões – teimam que o futuro e o progresso de Cabo Verde passam única e essencialmente pela via da língua portuguesa (embora a história tem mostrado não ser bem assim). É certo que a língua portuguesa, como uma outra língua qualquer, europeia ou não, tem valor e pode, assim, constituir um instrumento de alavancar processos de desenvolvimento. Por esse motivo, deve-se prezar pelo bom domínio da língua portuguesa.
Os mesmos nacional-lusitanistas idolatram a escola colonial, embora a instituição ter sido basicamente uma arena de violência, simbólica e física. O mau uso da língua portuguesa (ou faltas quaisquer de conhecimento) ou o simples uso do crioulo cabo-verdiano dentro do recinto da escola colonial resultava, quase sempre, em vexame público ou mesmo pesadas penas corporais. O chicote e a palmatória marcaram as mentes e os corpos de muitos que passaram pela escola colonial.
A relação entre o cabo-verdiano e o português não constitui um jogo de soma zero – pesem embora as consequências das políticas glotofágicas do regime colonial em Cabo Verde. O bilinguismo real – e não a diglossia – construir-se-á a partir de um conhecimento profundo das línguas cabo-verdiana e portuguesa. E para que tal aconteça urge erigir os alicerces do ensino da língua cabo-verdiana, que se encontra em clara desvantagem em relação ao português. Os recursos do Estado, materiais, simbólicos ou de outra ordem, tem sido canalizado mais para a língua portuguesa – em detrimento da língua-alma e essência da nação cabo-verdiana. Importa, assim, construir uma “paridade de estima” focado na eliminação de preconceitos, mitos, e desinformações para com a língua cabo-verdiana. Da mesma maneira, o Estado tem do materialmente sustentar uma nova política linguística centrada na elevação social da língua cabo-verdiana – se se quer, realmente, materializar o número dois do artigo nove da Constituição da República. O processo de oficialização e real dignificação da língua cabo-verdiana tem sido verdadeiramente sisifiano, devido, em grande parte, a disseminação de mitologias – senão mesmo de erros – linguísticas de há muito desconstruídos pela ciência moderna.
Enquanto produto da escola pública do pós-independência, fui tão bem preparado, intelectual e emocionalmente, que me permitiu competir, de igual para igual, com colegas estrangeiros (portugueses e outros europeus do programa Erasmjus) nas bancas das universidades portuguesa e norte-americana. Em grande parte, o sustento académico adveio das discussões, debates, sessões de estudos fora da sala de aula (ah bons tempos de estudos no Parque 5 de Julho) que eram conduzidas essencialmente na língua cabo-verdiana. De filosofia à matemática, passando pelo português, o crioulo cabo-verdiano foi um potente – embora subestimado – aparelho no processo da minha/nossa aprendizagem. Os meus colegas do Liceu Domingos Ramos bem sabem que a língua cabo-verdiana foi deveras uma poderosa alavanca com a qual pudemos levantar o voo académico.
Por fim, em jeito de conclusão, diria que a sugestão do uso do cabo-verdiano nas escolas por um número cada vez maior de cidadãos não constitui, ao contrário do que se tem escrito, uma imposição. Aliás, qualquer caloiro de ciência política bem sabe que a sociedade civil, ao contrário da sociedade política (o Estado qua leviatão), não dispõe de poderes alguns de imposição. Impor, que na sua essência tem o princípio de obrigatoriedade, é algo que deriva do Estado. O que realmente existe é uma pressão, diria desarticulada, da parte dessa sociedade civil que insiste em provocar mudanças e reformas na política linguística em Cabo Verde, particularmente no campo de planeamento linguístico na educação.
Artigo publicado em Santigo Magazine no dia 21 de dezembro de 2021.