« (...) Não se imagina, no Brasil, O Globo, a Folha ou o Estadão a publicarem separatas em português de Portugal, tal como não se imaginava, até agora, jornais portugueses a lançarem separatas em português do Brasil (...).»
Negócios são negócios, já se sabe. E é inútil discuti-los, seja os que trazem ao mercado qualquer coisa de útil ou os que recorrem às mais tolas artimanhas para vender parcelas de terreno na Lua. Mesmo assim, não deixa de causar espanto o anúncio recente, por parte de um diário português, de “um suplemento mensal com notícias escritas em português do Brasil e um site […] com atualização [sic] diária noticiosa”. Não pelo negócio em si nem pelo que o move (haverá cerca de meio milhão de brasileiros a viver em Portugal, segundo as estatísticas), mas por constituir mais um episódio rocambolesco de uma peça em cena há já vários anos no espaço comum da língua portuguesa a que podemos chamar GFLPU, ou Grande Farsa da Língua Portuguesa Unificada. Expliquemos.
Quando nos atiraram à cara com o acordo ortográfico, que depois de assinado em 1990 ficou sepultado no esquecimento até o ressuscitarem como se faz aos vampiros, já no século XXI, os argumentos a seu favor vinham inchados de euforia. Citemos um opúsculo editado pela Impresa, onde nos argumentos a favor do acordo (“Polémica, prós e contras”) se lia isto: “Com o acordo deixará de haver necessidade de duplos textos em documentos oficiais portugueses e brasileiros e torna-se possível a adoção [sic] pela ONU do português como língua de trabalho”; “Era elevado o custo económico e financeiro da produção de dicionários, livros didáticos [sic] e literários com ortografias diversas para Portugal e Brasil”; “Todos os países lusófonos poderão utilizar os mesmos livros e outros materiais nas ações [sic] educativas e de formação profissional”; “A afirmação de que à unificação da escrita se opõem as diferenças vocabulares e de pronúncia não faz sentido, porque ‘escrever do mesmo modo não significa falar do mesmo modo’.”
Antes de ir mais além, um pequeno balanço destas maravilhas: o português continua a não ser língua de trabalho na ONU; nunca se produziram tantos dicionários como depois da “adoção” do dito acordo; quanto às obras literárias, cada qual escreve no português e na grafia que quer e as traduções continuam e continuarão a ser diferentes em Portugal e no Brasil; nos livros escolares, idem, cada qual tem os seus, não há partilha das mesmas obras, até porque o ensino é diferente nos dois países (convém dizer que, em África, também os manuais escolares são diferentes em cada um dos países); por último, deve ser porque “escrever do mesmo modo não significa falar do mesmo modo” que se anuncia agora o tal suplemento noticioso “com notícias escritas em português do Brasil”, uma iniciativa do Diário de Notícias, já a partir de dia 3 de Junho; e que também o PÚBLICO anuncie uma app dirigida à comunidade brasileira em Portugal, onde “experientes jornalistas brasileiros, vários deles correspondentes internacionais”, escreverão na sua variante, a par de textos do jornal escritos na variante portuguesa.
Depois de a CPLP ter aprovado em assembleia a revisão, ou rectificação, do malfadado Acordo Ortográfico de 1990, estas iniciativas só vêm reforçar a ideia de que a dita “unificação” é uma farsa. Se todos poderíamos “usar os mesmos livros” (argumento brandido pelos defensores do AO90), porque não poderemos ler as mesmas notícias? Não se imagina, no Brasil, O Globo, a Folha ou o Estadão a publicarem separatas em português de Portugal, tal como não se imaginava, até agora, jornais portugueses a lançarem separatas em português do Brasil, não só porque os portugueses a viver no Brasil se habituaram depressa à escrita local, como os brasileiros a viverem em Portugal não precisam de tradução para lerem o português de cá. Uma coisa é certa: estas iniciativas são mais uma adenda, e de peso, à certidão de óbito do acordo ortográfico. Unificados, sim, mas com “tradução” na escrita, até nos jornais. Que lindeza!
Bom, mas mesmo as coisas mais estranhas e inexplicáveis podem ter os seus benefícios (além dos económicos). Porque em tais textos poderemos voltar a ler palavras que, em nome da pretensa “unificação” do português, foram aqui banidas, como concepção, recepção, infecção, decepção, percepção, espectadores e tantas outras, em lugar das que Portugal inventou só para seu uso (“unificado”, claro), como conceção, receção, infeção, deceção, perceção, espetadores, etc. Isto, se os textos forem mesmo escritos em português do Brasil e não naquela miscelânea de grafias que acaba por não ser de lá nem de cá, como tantas vezes vemos e lemos na imprensa.
Sim, o português é diferente em Portugal, Brasil, Áfricas e Orientes. É isto um problema? Não, é uma bênção. Aceitem-na como tal e deixem de alinhar neste “circo”. Reconhecer as variantes do português e lidar com elas sem complexos é mesmo a melhor unificação que podemos ter.
Artigo de opinião do jornalista português Nuno Pacheco, transcrito, com a devida vénia do jornal Público de 30 de maio de 2024. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.