(Baptista com pê, sempre com pê, claro)
– António Lobo Antunes, O Tamanho do Mundo
1. A ausência de tradição prescritiva em matérias relacionadas com a língua será uma das razões para a inexistência no mundo anglófono de algo vagamente semelhante ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Lembrei-me disso recentemente, numa discussão acerca do apelido do excelente futebolista João Félix. Respeitando a lógica da entrada do vocábulo na língua portuguesa (com Felici e Felice, no século XI), o <x> de Félix não indica /ks/, mas tem o valor correspondente ao indicado por um <z> final, como em Feliz. Ou seja, um João Félix e um João Feliz só se distinguem segmentalmente pela vogal da primeira sílaba dos respectivos apelidos. A pronunciação de Félix é uma excepção linguisticamente justificada. No entanto, soube há pouco tempo, o próprio João Félix, apesar de lhe terem indicado a regra, adopta a pronunciação que vai contra a norma (final /ks/), com um argumento irrebatível: «continuo com a minha ideia e foi assim que os meus pais me ensinaram.»
E quanto a comunicação social? Poderá (ou deverá) respeitar a vontade de João Félix e da família? Aparentemente, não. Segundo José Mário Costa, do Ciberdúvidas, «o facto de o futebolista João Félix e a sua família invocarem que sempre disseram o apelido com a prolação /ks/ é um direito que lhes assiste. Não sendo, porém, essa a norma culta, é esta que deve ser seguida pelos jornalistas que o nomeiam na rádio ou na televisão». Isto é, em Portugal, segue-se o prescrito, independentemente da vontade do dono do nome. Assunto resolvido. No entanto, fora Félix norte-americano e outro galo cantaria.
Em inglês, o nome próprio Stephen é homófono de Steven. Ou seja, o <ph> de Stephen deve ser entendido como se lá estivesse um <v>. Muitos leitores portugueses de Stephen King e muitos admiradores de Stephen Hawking estarão neste momento em estado de choque, mas mais vale agora do que nunca. Alguns estarão até em negação: quanto a isso, nada posso fazer. A razão para esta pronunciação “canónica” de Stephen prende-se com um fenómeno, já há muito obsoleto, ocorrido em inglês antigo, com alternação foneticamente condicionada do vozeamento intervocálico das fricativas. Por exemplo, os singulares leaf (folha) ou half (meio/metade) deram os actuais plurais leaves e halves, justamente pela presença de vogais a ladearem a consoante. Ou seja, entre vogais, o /f/ passou a /v/. Ao entrarem (ao traduzirem-se) em inglês palavras com <ph> (=/f/), este converteu-se automaticamente num /v/ na língua falada (e pensada), que se reproduz actualmente de forma opaca na forma ortográfica Stephen, mas transparente na forma Steven.
No entanto, um dos melhores basquetebolistas de sempre, o norte-americano Stephen Curry, é indiferente a tudo isto. Ao ouvir o relato e os comentários de um recente jogo da equipa de Curry, os Golden State Warriors, rapidamente acabei por perceber que todos os actores do mundo da NBA respeitam a vontade manifestada por Curry de o <ph> do teu Stephen corresponder, ao contrário do que é costume, a um /f/ em vez de a /v/ (com impacto na vogal anterior). Aliás, é curiosa a óptica de Curry: quem pronuncia Stephen com /v/ pronuncia de forma incorrecta. No entanto, Curry encontrou uma solução para descanso do próprio e de quem não deseja infringir a regra: “Chamem-me Steph, diz ele”. Um meio-termo. Assunto resolvido.
2. De vez em quando, Pedro Santana Lopes está na moda. E nada tenho contra isso. Aquilo que me incomoda são as oportunidades perdidas, umas atrás das outras, pela comunicação social portuguesa, perante o secretário de Estado que assinou o AO90 em nome da República Portuguesa, o primeiro-ministro que anunciou na Assembleia da República o regresso do monstro, o deputado que nunca se absteve de fazer uso da palavra sobre o assunto, o comentador televisivo que amiúde intervém sobre o tema, o político que frequentemente responde a perguntas sobre o dito cujo, culminando no colunista que escreveu «agora facto é igual a fato (de roupa)».
Perdem-se oportunidades atrás de oportunidades, sempre que não se pergunta a Santana Lopes: «Porque é que escreveu "agora facto é igual a fato (de roupa)" ¹ e, mais importante, por que razão nunca se retractou? ²», ou «não acha grave – e um sinal do fracasso de todo o processo – uma pessoa com a sua dimensão ter escrito "agora facto é igual a fato (de roupa)"?»; ou ainda «crê que o seu "agora facto é igual a fato (de roupa)" é uma das causas dos fatos em vez de factos e de contatos em vez de contactos lidos por aí?». Efectivamente, por aí.
3. Já passaram uns anitos (Público, 21/04/2020; Público, 27/04/2020; Aventar, 27/04/2020) e Vital Moreira continua sem se retractar. Pior, insiste em pronunciar-se a favor do AO90, quando, em simultâneo, adopta formas ortográficas que violam o AO90. Há uns tempos, foi o lêem. Agora, o há-de: «porque é que se há-de dizer e escrever "adição"?». Tem o direito de gostar do AO90. Mas tem o dever de admitir que, das três, uma: ou não o leu na íntegra, ou leu-o na íntegra e ele é inaplicável, ou não o adopta de facto e só defende a ideia, porque é uma causa sua.
Texto de opinião publicado no suplemento Ipsílon do jornal Público no dia 28 de julho de 2023. Segue a norma ortográfica de 1945.