«Surpreende-me haver tanta gente a protestar contra um Acordo Ortográfico que não mexe na oralidade mas procura, sem ir tão longe quanto devia, simplificar a escrita. Não vejo a mesma tenacidade no combate às afrontas à nossa língua, como (…) por exemplo (…) haver uma faculdade pública onde todas as aulas são dadas em inglês (…).» Carta publicada no jornal Público de 12/04/2012.
Intriga-me a sanha anti-Acordo Ortográfico (AO) que o Públiconão se cansa de difundir. Também sou contra, mas não pelas razões apresentadas que se fundam essencialmente na tradição, no saudosismo, na etimologia.
Tentam ridicularizar a eliminação das consoantes mudas que ajudam a abrir a vogal anterior. Ora há numerosas palavras em que tal não se verifica (actriz, actual, actividade, etc.). Acabo de ler a carta de um leitor alarmado com a eliminação da consoante muda em ótica por poder ocasionar confusões que levem a operar aos ouvidos quem sofre de cataratas… Erros médicos surgem por falta de diligência, não pelas palavras até porque faladas (óptica/ótica) pronunciam-se de igual modo.
Acho intelectualmente indigente invocar eventuais confusões na pronúncia e no sentido de palavras, como se a nossa língua não estivesse, mesmo sem AO, prenhe de termos homónimos e homógrafos. Não é a grafia que faz a oralidade. Com ou sem AO, as pessoas continuam a falar como aprenderam no seu meio desde o nascimento. A grafia deve corresponder, tanto quanto possível, ao falar. Na actual civilização electrónica, a grafia deve ser simplificada não só nas consoantes mudas mas também na multiplicidade e confusão de caracteres para representarem o mesmo som. Por coerência, quem acha a etimologia um valor dominante deve escrever como os copistas medievais — sem acentos e com todas as consoantes mudas que o latim de onde derivamos nos impõe.
A defesa da nossa língua não está no modo de escrever (a propósito, eu pronuncio e escrevo espectador, expectativa). Surpreende-me haver tanta gente a protestar contra um Acordo Ortográfico que não mexe na oralidade mas procura, sem ir tão longe quanto devia, simplificar a escrita. Não vejo a mesma tenacidade no combate às afrontas à nossa língua, como são, por exemplo: haver uma faculdade pública onde todas as aulas são dadas em inglês; o uso de pesos e de medidas anglo-saxónicos bem como do ponto no lugar da vírgula; a expressão à inglesa de palavras latinas (mídia, Flórida) ou de letras do alfabeto (éme-ai-ti) ou ainda de palavras derivadas do aportuguesamento do equivalente inglês (râguebi, de rugby, pronunciado “rèiguebi”); o recurso a expressões inglesas como shopping, call center, marketing, show, sponsor, etc., etc.
Desprezar a nossa língua não é cultura, mas mediocridade. Como Eça, defendo que se «deve falar, com impecável segurança e pureza» a nossa língua e devemos falar «nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros!» (Carta a Madame S.)
* In jornal Público de 12 de abril, na secção “Cartas à Directora”. Respeita a grafia de 1945 seguida neste jornal português.