Evocação da professora universitária Margarita Correia in memoriam da linguista e académica Maria Helena Mira Mateus – falecida em 30 de março de 2020 –, com quem trabalhou no Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), durante 20 anos.
A professora Maria Helena Mira Mateus teve um papel marcante, e vai ficar na história da linguística portuguesa como uma das suas figuras mais luminosas, como uma das suas maiores "estrelas". Não me vou deter sobre a sua investigação de base, a fonologia. Ela trabalhava muito com os sons da língua, e sobre isso eu não vou falar, porque há quem o faça e consiga explicar muito melhor do que eu o papel da professora Maria Helena a esse nível.
Quero falar da professora Maria Helena sobretudo a partir da altura em que eu a conheci, que foi no fim da década de 80, altura em que eu estava a fazer o mestrado em Linguística Portuguesa Descritiva na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), e tivemos a oportunidade de visitar o ILTEC [Instituto de Linguística Teórica e Computacional] porque um dos seminários era dado aí. Foi então que a conheci. Mais tarde, em 1990, entrei para a faculdade como assistente estagiária, e uma das disciplinas que eu ensinava era Introdução aos Estudos Linguísticos, de que a professora Maria Helena era a coordenadora; e foi aí que começou a nossa maior ligação. Em 1992, concluí o meu mestrado e a professora chamou-me para trabalhar no ILTEC.
O ILTEC foi criado por ela, que foi presidente da direção entre 1988 até 2012, e até ao final do ILTEC, em 2015, foi a nossa presidente honorária. Maria Helena foi a alma do Instituto, digamos assim. O ILTEC foi criado para acolher o grande projeto europeu de linguística computacional que era o projeto da EUROTRA, um projeto de tradução automática. Na época, o presidente da JNICT, Mariano Gago, sugeriu que se criasse aquela associação para se acolher esse projeto europeu. A professora Maria Helena teve a inteligência de se rodear das pessoas mais competentes que nós tínhamos para desenvolver esse projeto. Foi o primeiro grande projeto em Portugal de linguística computacional, foi o primeiro grande projeto de linguística europeu em que Portugal participou e abriu as portas para muito do que é hoje em dia a linguística do português. O projeto em si, o projeto EUROTRA, não teve grandes resultados, porque não havia o conhecimento suficiente para que se pudesse obter os resultados que se esperavam, mas o seu desenvolvimento contribuiu decisivamente para a linguística do português porque permitiu termos a consciência do quanto faltava ainda fazer na descrição do funcionamento da língua portuguesa para que um projeto daquela natureza pudesse seguir em frente.
Foi uma pioneira no seu trabalho de doutoramento, foi pioneira relativamente a este projeto, foi pioneira na medida em que teve uma participação ativa nos órgãos da comunicação social – durante vários anos escrevia artigos de opinião relacionados com a língua dando visibilidade ao trabalho dos linguistas –, e foi pioneira na questão da observação da relação da linguística e as políticas linguísticas da língua portuguesa. Coordenou uma gramática [Gramática da Língua Portuguesa], editada no inicio da década de 80, que foi a primeira grande gramática portuguesa que procedeu à descrição do português com base no modelo teórico que era generativo. Foi de facto pioneira em muitas áreas relativas à língua portuguesa.
Mulher exemplar, de ideias geniais
Mas, acima de tudo, Maria Helena era uma mulher extraordinária, uma força da natureza, cheia de energia, tinha um otimismo e uma alegria interior que nunca mais acabavam. Isso permitiu-lhe passar e sobreviver a desgostos e problemas graves da sua vida, sempre com otimismo. Acabou por constituir para nós todos não só uma grande linguista, uma mestre, não só uma grande coordenadora de projetos, não só uma pessoa cheia de ideias geniais, não só uma pessoa com grande capacidade de investigação, mas também uma mulher exemplar do ponto de vista do seu comportamento, da sua energia, da sua força vital.
Na área da fonologia deixa muitos discípulos, começando pela professora Maria João Freitas [da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa], o professor João Veloso [da Faculdade de Letras da Universidade do Porto], a professora Isabel Pereira, da Universidade de Coimbra, o professora Fernando Martins, da FLUL, a professora Sónia Frota [da FLUL], [e tantos e tantos outros ]. Deixou muitos discípulos, inclusive, em outras áreas. Embora ela nunca tenha sido minha professora, por todo o trabalho que eu desenvolvi com ela ao longo de mais de 20 anos no ILTEC, aprendi muito sobre gestão de projetos, relações humanas, relações sociais, uma miríade de fatores que fazem com que me sinta uma discípula, uma seguidora, não trabalhando, porém, nas suas áreas de investigação de eleição.
Para o futuro, Maria Helena Mira Mateus deixa muita coisa: fundou a Associação de Professores de Português; fundou a Associação Portuguesa de Linguística; coordenou muitos trabalhos com o Ministério da Educação; fez muitos trabalhos para o Governo; colaborou com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; formou muitas pessoas nas suas áreas; deixou projetos do ILTEC e os recursos todos que fazem parte do património dele; e deixou, sobretudo, uma marca na vida das pessoas. Ninguém se cruzou com a Maria Helena e ficou indiferente.
Obviamente há quem goste mais e quem goste menos, mas ela não passava despercebida na vida das pessoas – e todos aqueles com quem ela se cruzou ficaram marcados pela sua presença e pela sua forma de ser.
Depoimento prestado nos programas Língua de Todos, emitido na RDP África, na sexta-feira, dia 3 de abril, pelas 13h20* (com repetição no sábado seguinte, dia 4 de abril, depois do noticiário das 09h00); e Páginas de Português, na Antena 2, no domingo, dia 5 de abril, pelas 12h30* (repetido no sábado, dia 10 de abril, às 15h30). Hora oficial de Portugal continental, ficando ambos os programas disponíveis posteriormente aqui e aqui.