«Como nenhuma sociedade civilizada existe sem normas, cabe aos novos gramáticos descrever para normatizar, objetiva e detalhadamente, a relativa diglossia existente no português brasileiro [...].»
I.
Mesmo em situações mais formais de comunicação, o brasileiro (na condição de usuário culto da língua) não fala exatamente como escreve.
Ninguém discorda disso.
— Ok. Mas o que é uma pessoa culta, e o que isso tem a ver com gramáticos normativos?
Uma pessoa considerada culta é mensurada como aquela que tem elevado grau de letramento, ou seja, tem um grande volume de leitura de diversos temas e gêneros textuais, sobretudo de obras de autores consagrados no cânone literário nacional e internacional, pois nelas se faz presente toda a universalidade humana. Inevitavelmente sua cultura tende a ser mais elevada que a média porque esse indivíduo passa a ter contato com diferentes pensamentos, reflexões, hábitos, lugares, artes, personalidades, mundividências, filosofias, conhecimentos, etc. Logo, sua fala/escrita tenderá a ser mais elaborada que a de pessoas com baixo grau de letramento, uma vez que a sua cultura letrada é inevitavelmente acima da média.
Ainda assim, é preciso reiterar que o cidadão “culto” não fala exatamente como escreve, mesmo que esteja num contexto mais monitorado de uso da língua.
Um exemplo disso tem a ver com a colocação pronominal, com a estrutura verbal e com a regência verbal — dificilmente esse tipo de usuário da língua vai falar «Quando chegar a casa, enviar-te-ei o e-mail.» Afinal, a esmagadora maioria dos brasileiros (cultos ou não) diz assim: «Quando chegar em casa, vou te enviar o e-mail.»
— Ok, Pest. Mas aonde você está querendo chegar?
Calma, little grasshopper. E releia o título (lá em cima).
Releu? Então, siga o fio...
O maior vacilo dos gramáticos normativos, ao sistematizarem a norma culta, não foi basearem-se no registro culto escrito para a sistematização da gramática da língua portuguesa — afinal, o propósito deles era estabelecer modelos de uso da língua considerados socialmente “exemplares”, tomando como padrão o uso da língua por escritores prestigiados, a fim de instituir uma norma-padrão.
O maior pecado deles, na real, foi este: recomendar os modelos dessa norma culta escrita para a... fala, sem criteriosa delimitação e distinção pontual entre fala e escrita cultas.
Ora, bolas! Esta foi a pedra que enfiaram em seus próprios sapatos, no exato instante em que atribuíram à fala os modelos próprios da norma culta escrita, sem um rigoroso critério de delimitação do que é próprio da fala culta e do que é próprio da escrita culta.
II.
Quer ver a prova disso? Então, acompanhe (note o que eu pus em negrito):
1. Rocha Lima (1957 [1972]):
[...] para que a Gramática Normativa continue a ser, fundamentalmente, o que sempre aspirou a ser: um livro redigido com simplicidade e clareza, e norteado por obsessiva busca de exatidão no sistematizar as normas da modalidade culta do idioma nacional —, dever primeiro do ofício de professor de português. (...) É uma disciplina, didática por excelência, que tem por finalidade codificar o “uso idiomático”, dele induzindo, por classificação e sistematização, as normas que, em determinada época, representam o ideal da expressão correta. “Son formas correctas de decir aquellas aceptadas y usadas por los grupos más cultos de la sociedad. Corrección quiere decir aqui prestigio social de cultura.” (Amado Alonso e Pedro Henríquez Ureña, Gramática castellana, 4a ed., 2 vols., Buenos Aires: Losada, 1943, vol. 1, p. 16). Fundamentam-se as regras da gramática normativa (distingue-se, assim, a gramática normativa da gramática descritiva, que examina a língua como “sistema de meios de expressão”, sem levar em conta a sua utilização imediata como código de bem falar e escrever; e claro que se trata de disciplinas interdependentes, porém de finalidades distintas) nas obras dos grandes escritores, em cuja linguagem as classes ilustradas põem o seu ideal de perfeição, porque nela é que se espelha o que o uso idiomático estabilizou e consagrou. (...) Refiro-me, decerto, àqueles escritores de linguagem corrente, estilizada dentro dos padrões da norma culta. Excetuam-se, pois, os regionalistas acentuadamente típicos, assim como os experimentalistas de todos os matizes —, por admiráveis que possam ser uns e outros. Estes últimos apreciam-se no âmbito da estética literária, mas não se prestam a abonar fatos da língua-comum.
2. Evanildo Bechara (1961):
Cabe à gramática normativa, que não é uma disciplina com finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais do convívio social. A gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos e dicionaristas esclarecidos.
3. Domingos Paschoal Cegalla (1962):
Se nos permitem, tomamos a liberdade de lembrar aos abnegados colegas de ensino que o estudo da gramática, por parte dos discípulos, deve andar lado a lado com a redação de textos, a interpretação de poemas e excertos literários e a leitura de livros e revistas de boa qualidade. Só com essa didática plurivalente é que o ensino do português atingirá seu objetivo precípuo, que é levar o estudante a assenhorear-se gradativamente das normas e dos recursos do idioma, nas modalidades oral e escrita. (...) A Gramática Normativa enfoca a língua como é falada em determinada fase de sua evolução: faz o registro sistemático dos fatos linguísticos e dos meios de expressão, aponta normas para a correta utilização oral e escrita do idioma, em suma, ensina a falar e escrever a língua-padrão corretamente. Este livro pretende ser uma Gramática Normativa da Língua Portuguesa do Brasil, conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na época atual. (...) A língua culta é usada pelas pessoas instruídas das diferentes profissões e classes sociais. Pauta-se pelos preceitos vigentes da gramática normativa e caracteriza-se pelo apuro da forma e pela riqueza lexical. (...)
4. Celso Cunha (1970):
Parecia-nos faltar uma descrição do português contemporâneo que levasse em conta, simultaneamente, as diversas normas vigentes dentro do seu vasto domínio geográfico (principalmente as admitidas como padrão em Portugal e no Brasil) e servisse, assim, fosse de fonte de informação, tanto quanto possível completa e atualizada, sobre elas, fosse de guia orientador de uma expressão oral e, sobretudo, escrita que, para o presente momento da evolução da língua, se pudesse considerar “correta”, de acordo com o conceito de “correção” que adotamos no capítulo 1. (...) Uma gramática que pretenda registrar e analisar os fatos da língua culta deve fundar-se num claro conceito de norma e de correção idiomática. (...) Todo o nosso comportamento social está regulado por normas a que devemos obedecer, se quisermos ser corretos. O mesmo sucede com a linguagem, apenas com a diferença de que as suas normas, de um modo geral, são mais complexas e mais coercitivas. Por isso, e para simplificar as coisas, Jespersen define o “linguisticamente correto” como aquilo que é exigido pela comunidade linguística a que se pertence. O que difere é o “linguisticamente incorreto”. Ou, com suas palavras: “falar correto significa o falar que a comunidade espera, e erro em linguagem equivale a desvios desta norma,...”. (...) Entre as atitudes extremadas — dos que advogam o rompimento radical com as tradições clássicas da língua e dos que aspiram a sujeitar-se a velhas normas gramaticais —, há sempre lugar para uma posição moderada, termo médio que represente o aproveitamento harmônico da energia dessas forças contrárias e que, a nosso ver, melhor consubstancia os ideais de uma sã e eficaz política educacional e cultural dos países de língua portuguesa. “Na linguagem é importante o polo da variedade, que corresponde à expressão individual, mas também o é o da unidade, que corresponde à comunicação interindividual e é garantia de intercompreensão. A linguagem expressa o indivíduo por seu caráter de criação, mas expressa também o ambiente social e nacional, por seu caráter de repetição, de aceitação de uma norma, que é ao mesmo tempo histórica e sincrônica: existe o falar porque existem indivíduos que pensam e sentem, e existem ‘línguas’ como entidades históricas e como sistemas e normas ideais, porque a linguagem não é só expressão, finalidade em si mesma, senão também comunicação, finalidade instrumental, expressão para outro, cultura objetivada historicamente e que transcende ao indivíduo.” (...) pondera Eugênio Coseriu, o lúcido mestre de Tübingen — se “é um sistema de realizações obrigatórias, consagradas social e culturalmente” a norma não corresponde, como pensam certos gramáticos, ao que se pode ou se deve dizer, mas “ao que já se disse e tradicionalmente se diz na comunidade considerada”.
[Faltou a eles alguma ressalva em certas lições, balizando e discriminando fala culta de escrita culta. Já era. Já foi. Óbvio que isso não desabona o trabalho deles, cabendo a nós a destilação dessas lacunas.]
III.
Agora Inês é morta?
Hmmm... No caso deles, sim, pois já estão com a Inês.
Mas... haverá uma nova geração de gramáticos normativos a corrigir esse “pecado”.
Por exemplo, caberia aos gramáticos normativos dizer que na fala culta do português brasileiro, a próclise em início de período ou oração é de rigor (em grande parte das vezes). Portanto, faz parte da norma culta falada tal colocação pronominal. Já na norma culta escrita tal colocação ainda é minoritária, preferindo o brasileiro a colocação enclítica.
O fato é que, há muitas décadas, esse equívoco dos gramáticos vem dando munição aos contumazes críticos que curtem vergastar a gramática normativa e, por extensão, os seus autores — lembre que 99% deles morreram e, por isso, não podem atualizar as suas lições gramaticais nem os seus discursos linguísticos. Ah, se pudessem...
Se vivos estivessem, certamente (penso eu) estariam atualizando suas obras com as novas e consolidadas visões linguísticas sobre o conceito de norma e os novos modelos de uso — para a fala e para a escrita —; afinal, eram grandes estudiosos, cultores do idioma, pessoas sérias e comprometidas com a verdade. Mas as pessoas morrem, infelizmente, e com elas morre a possibilidade de acompanhar o F5 da língua.
Como nenhuma sociedade civilizada existe sem normas, cabe aos novos gramáticos descrever para normatizar, objetiva e detalhadamente, a relativa diglossia existente no português brasileiro — ou seja, é preciso sinalizar quando a norma culta falada se assemelha à norma culta escrita, e vice-versa, distinguindo-as sempre que necessário, para que a norma-padrão seja mais flexível e adequada a cada contexto de uso.