«(...) Que alguns embirrem, acho bem e até leio com agrado argumentos exaltados como os de Manuel Alegre (ou como foram os do saudoso Vasco Graça Moura). Coisa diferente é a Academia das Ciências, que nunca foi capaz sequer de produzir um dicionário decente, se venha arvorar em árbitro do que deve ser a nossa língua. (...)» .
Como o nome indica, um acordo ortográfico resulta de um acordo sobre o orto (que em grego significa reto ou direito) que a grafia deve ter. A grafia já teve vários modos e formas e feitios. A ideia de um novo acordo que vem de 1990, há 27 anos portanto, não era agradar a toda a gente nem tão pouco obrigar a que, em privado, todos escrevessem da mesma maneira as mesmas palavras. O acordo serve para jornais poderem segui-lo ou fazerem campanha contra (como o Público), para as escolas e o Estado o adotarem. De resto, a liberdade mantém-se.
É pois racionalmente inexplicável uma polémica tão antiga a respeito de algo que – ao contrário do que nos querem impingir – nada tem a ver com pureza da língua ou com as confusões de palavras. Quem estudou um pouco de linguística sabe que as palavras são sempre entendidas no contexto de frases e não isoladamente – tanto faladas como escritas. Por isso canto (verbo cantar), canto (da sala) ou canto (no futebol) podem ser escritas da mesma maneira e serem sempre entendidas consoante o contexto.
Nos jornais vê-se gente orgulhosamente a colocar no final do artigo que «não segue o acordo ortográfico» ou que «escreve de acordo com antiga grafia». Eu acho bem. Podem escrever "pharmácia" e "phleugma", tanto me faz. Mais curioso é o facto de eu pegar na manchete do Público e verificar que há apenas três palavras que diferem do AO em todo um texto de mais de cinco mil carateres. São elas "detectar" (em que o c não se lê nunca); "activa" (onde pode haver quem leia o c, mas é um pouco ridículo); e "accionista" (onde uma vez mais não se lê o c). Em contrapartida, há um erro, ou gralha – "anormalia" (em vez de anomalia) – que nada tem a ver com o acordo. O texto é causa intitula-se «Comissões de 200 mil recebidas por gestores envolvidos no caso Sócrates» e estava a abrir o sítio da Internet do jornal esta manhã.
No Expresso, onde Miguel Sousa Tavares não segue o acordo, há duas palavras nos primeiros mil carateres do seu último texto que são diferentes – "acção" e "inspector"’. Ou seja, andamos a discutir o que já foi caracterizado há anos por Eduardo Catroga a propósito de outros assuntos.
É neste contexto que não se entende bem a tardia iniciativa da Academia das Ciências. É claro que tudo pode ser melhorado, mas não é menos claro que, ao tentar melhorar, tudo se pode piorar.
Eu, pessoalmente, aderi ao Acordo Ortográfico por dois motivos simples: o primeiro é pensar que pode contribuir para uma formalização do português com variantes escritas que sejam mutuamente reconhecidas (porque continua a haver diferenças entre a nossa ortografia e a do Brasil e que se estendem aos restantes países onde se fala português). Isso é importante num mundo em que cada vez mais se escreve em computadores, que aliás corrigem automaticamente a grafia. Como sublinha no Ciberdúvidas Lúcia Vaz Pedro, «quando há oscilação de pronúncia, aceitam-se as duas grafias. Obviamente, que o povo português não vai começar a falar com a pronúncia brasileira nem vice-versa, e, tendo cada variante a sua pronúncia, deve seguir-se a respetiva grafia. O Acordo Ortográfico pretendeu, repetimos, reduzir ao mínimo possível as diferenças existentes».
Depois, porque não fazendo a ortografia parte da gramática, nem alterando as formas de falar, nada obstava a que se fizesse esse esforço de reconhecimento mútuo (pode ver-se que a televisão é unificadora dos modos de falar; porém, e apesar disso, com as palavras escritas com a mesma grafia, persistem modos diversos de as dizer em Lisboa, no Porto, em Viseu ou em Faro).
O que é curioso é que os puristas não lamentam que não se possa dizer "bicha" em Portugal sem remeter imediatamente para a homossexualidade. Isso é algo que entrou via Brasil. Quando era miúdo, bicha era igual a fila. Mas ainda bem que não reclamam, porque é isto que faz dos idiomas corpos vivos e em movimento. Que alguns embirrem, acho bem e até leio com agrado argumentos exaltados como os de Manuel Alegre (ou como foram os do saudoso Vasco Graça Moura). Coisa diferente é a Academia das Ciências, que nunca foi capaz sequer de produzir um dicionário decente, se venha arvorar em árbitro do que deve ser a nossa língua.
O ministro dos Negócios Estrangeiros pode ter sido arrogante na resposta, ou autoritário, ou o que lhe chamou o seu camarada Manuel Alegre. Mas ainda bem que Augusto Santos Silva (e já parece que tenho procuração para o defender) pôs ordem naquilo que deve estar na ordem (orto). E que o Parlamento recusou alterar o Acordo Ortográfico para Acordo Heterográfico. 27 anos depois não podemos continuar a discutir as preferências de cada um. A minha avozinha morreu em 1985 a escrever mãi e pae, como tinha aprendido antes do acordo de 1911, e juro que nunca ninguém lhe chamou analfabeta. Apenas se manteve na sua... Eu, como os meus pais, escrevo também como aprendi. E todos pronunciámos ambas as palavras da mesma forma.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico
Texto publicado no jornal Expresso, no dia 9/02/2017.