«(...) E o que acontece com os "burros velhos"? Estes também aprendem línguas, seguramente, e até podem atingir elevados níveis de proficiência. (...])»
Na maioria das vezes, os animais referidos nos provérbios constituem personificações, i.e., representam humanos com determinados comportamentos e características, e o provérbio expressa um julgamento (moral, ético, social...) sobre eles - e.g. «cão que ladra não morde», «a curiosidade matou o gato», «a bezerrinha mansa mama a sua e a alheia», «grão a grão, enche a galinha o papo». Não compreendo, por isso, iniciativas como a de pretender modificar os provérbios populares para eliminar linguagem ofensiva para os animais – como se os animais se ofendessem e como se não representassem, precisamente, os humanos!
Um dos provérbios que mais me ocorre e sobre o qual mais perguntas me fazem é «burro velho não aprende línguas». A conceção por trás do provérbio é a de que uma pessoa (o burro) a partir de certa idade (velho) não será capaz de aprender línguas, excetuado a materna, que adquirimos sem esforço, na infância. O provérbio expressa um facto incontestável: o de que as crianças, intuitiva e rapidamente, aprendem as línguas com as quais estiverem em contacto, sem esforço, enquanto os adultos não conseguem fazê-lo. A Psicologia, a Neurologia e a Linguística explicam-no com base no fenómeno conhecido como neuroplasticidade, plasticidade neuronal ou cerebral.
Plasticidade é sinónimo de maleabilidade e denomina a capacidade de um corpo se deformar sem romper ou quebrar, i.e. a de uma entidade se adaptar ao meio e às circunstâncias. É característica de todos os seres vivos. A plasticidade neuronal diz respeito à capacidade do sistema nervoso central, cérebro incluído, de mudar ou se adaptar, do ponto de vista estrutural e/ou funcional, ao longo desenvolvimento e sempre que o sujeito é exposto a experiências ou estímulos novos.
Aprendizagem pode ser entendida como plasticidade e o cérebro humano é o que apresenta maior capacidade de adquirir conhecimento, explícita e implicitamente, de se adaptar. A plasticidade do cérebro em desenvolvimento é muito grande (só assim se explica tudo o que uma criança aprende nos primeiros anos de vida) e vai diminuindo com a maturidade, embora não desapareça. O cérebro em desenvolvimento encontra-se mais apto a adquirir conhecimento procedimental (relativo ao "como" executar tarefas ou exercícios), mas a aquisição de conhecimento declarativo, explícito, mantém-se ao longo da vida, havendo operações cognitivas que só conseguimos realizar com a maturidade intelectual (e.g. raciocinar sobre entidades e processos abstratos).
A aquisição de uma língua por uma criança realiza-se sobretudo com base em conhecimento procedimental – ela vai intuitivamente construindo o seu conhecimento sobre como funciona a língua, a sua gramática, e aperfeiçoa-o em resposta às produções linguísticas que recebe. A grande plasticidade cerebral das crianças permite, assim, entender a sua capacidade para lidar com as línguas ou, dito proverbialmente, explica porque «burro novo aprende bem línguas.»
E o que acontece com os «burros velhos»? Estes também aprendem línguas, seguramente, e até podem atingir elevados níveis de proficiência, dependendo da sua motivação, da qualidade e quantidade de input a que forem expostos e das estratégias metacognitivas (conscientes) de aprendizagem que adotarem. Aprenderão é de forma muito diferente: com recurso a conhecimento explícito sobre como funciona a língua e com maior esforço e perseverança do que as crianças. Em suma, burro velho aprende línguas, com certeza, mas com tenacidade, como «água mole em pedra dura».
Artigo da linguista e professora universitária portuguesa Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 27 fevereiro de 2023.