«Como vê, do Palatino a Lisboa, o latim atravessou fronteiras ao longo de centenas de marcos miliários e assentou arraiais na nossa vida.»
Na semana em que ensinei aos meus alunos de 10.º ano a variação histórica do português, decidi escrever um artigo sobre a importância do latim.
Hoje, quase não se ensina Latim nas escolas secundárias. Segundo dados oficiais, no final do século XX, havia aproximadamente 13 mil alunos a realizarem o exame de 12.º ano de Latim. Se compararmos estes aos 67 que o realizaram em 2018 (agora o exame é feito no 11º ano e, nos dois últimos anos, muitos alunos não o fizeram por não pretenderem usá-lo como prova específica), verificamos que o número é quase irrisório no total de alunos que fazem exames nacionais.
Para que serve estudar latim? Estará o leitor a cogitar («a pensar», do latim cogitāre,) por esta altura.
O latim está na génese da nossa língua e de tantas outras línguas novilatinas (italiano; castelhano; galego; francês; provençal; catalão; romeno, corso, sardo, rético). Daí a semelhança entre muitas das palavras destes idiomas, como podemos observar no verbo perdoar. Tem origem no vocábulo latino perdonare, formado por per (para) + donare (dar). No francês evoluiu para pardonner; no espanhol para perdonar; no italiano, temos perdonare.
Conhecer a língua e a cultura latina permite-nos entender melhor quem somos e donde viemos. Cerca de oitenta por cento do léxico português tem a sua génese no latim. Todavia, a sua influência verifica-se através do léxico herdado (que entrou por via popular, estando presente no português desde a sua origem) e do léxico integrado na língua (que entrou por via erudita, sobretudo no período renascentista).
Às palavras portuguesas distintas, que provém do mesmo étimo, chamamos palavras divergentes. São exemplos: arena > arena-areia; cathedra > cátedra-cadeira; factum > facto-feito; plenu- > pleno-cheio; solitariu > solitário-solteiro. As palavras mais próximas do étimo são as que entraram por via erudita.
Também há palavras portuguesas que são iguais, mas têm origem em étimos diferentes a que damos o nome de palavras convergentes. São exemplos: rideo > rio (forma do verbo rir) e rivo > rio (curso de água); sanum > são (saudável), sunt > são (forma do verbo ser) e sanctum > são (santo);
O latim não está morto, pois então! Ele está presente em grande parte do nosso dia a dia.
Já reparou no número de empresas ou entidades que adotaram nomes latinos? Vejamos; Visionarium – centro de Ciência do Europarque; Imaginarium – loja de brinquedos; Corpus Danone – iogurte; Lux – sabonete; Omnia – joalharia; Sanus dente – clínica dentária; Terra Nostra – laticínios; Vitalis – água; Securitas – empresa de segurança.
E quem nunca ouviu ou usou expressões como: Fulano de tal é persona non grata (pessoa indesejada); enviei o meu curriculum vitae (documento elaborado para apresentação pessoal); grosso modo era isto que tinha para dizer (por alto); a consulta foi adiada sine die (sem data fixa); aquele assunto gerou um qui pro quo (mal-entendido); são assuntos de lana caprina (de pouca importância); os atletas terminaram ex aequo (empatados); a carta tinha um post scriptum (escrito depois de já estar terminada); tive um lapsus linguae em plena conferência (erro de língua); o escritor recebeu um doutoramento honoris causa (por motivo honroso); o documento era apenas um pro forma (mera formalidade).
Como vê, do Palatino [em Roma] a Lisboa, o latim atravessou fronteiras ao longo de centenas de marcos miliários e assentou arraiais na nossa vida.
Artigo publicado no dia 21 de novembro de 2021, no Correio do Minho.