«Um simples "Passe o sal" de um primeiro encontro duma menina apaixonada dificilmente será o mesmo "Passe o sal", com a mesma suave e carinhosa melodia, depois de 20 anos de casamento [...].»
«Amor, vem cá, que eu quero te mostrar uma coisinha.»
Essa frase dita cheia de malícia, languidez, segundas intenções provavelmente vai ser pronunciada assim:
«Amoooor... vem cá...»
No entanto, se o enunciador da frase descobriu alguma possível traição, e está completamente infectado de ódio, provavelmente vai pronunciá-la assim, espumando:
«AMOR, VEM CÁ...»
Imagine outros cenários possíveis que tornariam a linha melódica desta frase diferente. Imaginou? Pois é...
A prosódia é a parte dos estudos linguísticos relacionada a determinadas características sonoras, as quais podem ser preenchidas de sentido.
A entonação pode alterar o sentido duma frase. A duração de um som também. Um sussurro, um balbucio, um clique, uma maneira especial de articular um som pode provocar diferentes efeitos de sentido – ou seja, certas características prosódicas da língua podem desencadear e determinar a interpretação dum enunciado.
Um simples «Passe o sal» de um primeiro encontro duma menina apaixonada dificilmente será o mesmo «Passe o sal», com a mesma suave e carinhosa melodia, depois de 20 anos de casamento com aquele rapaz por quem ela se derretia toda e hoje só quer saber de futebol enquanto cresce sua enorme barriga de cerveja.
Ou uma mãe raiz que quer descobrir qual dos três filhos quebrou aquela louça herdada da sua bisavó guardada/protegida a sete chaves... e lança em tom ameaçador:
«QUEM que-brou a lou-ça da mi-nha bi-sa?!»
O sangue gela só de ler essa frase com a intensidade, tom, duração certa, né?
É também pelas características prosódicas que se chega à conclusão de que X é sulista e Y é nordestino, que X é mulher e que Y é homem, que X transparece malandragem e Y transparece austeridade, etc.
Enfim... Observe a frase abaixo* e note como o efeito de sentido muda quando uma das palavras está em caixa alta (fiz isso para indicar a linha melódica da pronúncia):
1) JOÃO não aprecia fazer as tarefas depois do almoço.
Neste caso, estaríamos falando do João. É ele que não aprecia fazer as tarefas depois do almoço, e não outra pessoa.
2) João NÃO aprecia fazer as tarefas depois do almoço.
Aqui estamos falando que o João NÃO aprecia, talvez negando uma afirmação anterior de que o João gostasse de fazer as tarefas depois do almoço.
3) João não APRECIA fazer as tarefas depois do almoço.
Já nesta frase, estamos nos referindo à apreciação de João quanto ao fazer as tarefas depois do almoço. Talvez queiramos dizer que ele não aprecia, mas também não se nega a fazê-las, ou justamente se negue, por não apreciar fazê-lo.
4) João não aprecia FAZER as tarefas depois do almoço.
Agora, estamos dizendo que João não gosta de fazer as tarefas nesse horário. Talvez, ele até goste de discutir as tarefas, avaliá-las ou mandar que outros as façam; o que ele não gosta é de fazê-las.
5) João não aprecia fazer as TAREFAS depois do almoço.
Desta vez, o que falamos é que as tarefas é que não agradam a João depois do almoço. Provavelmente ele goste de fazer outras coisas depois do almoço, mas as tarefas não: talvez assistir à TV, contar histórias, dormir, ler, etc., mas, as tarefas, isso não!
6) João não aprecia fazer as tarefas DEPOIS do almoço.
Agora, o que enfocamos é o fato de que João não aprecia fazer as tarefas DEPOIS do almoço; se as tiver que fazer antes do almoço, ele as fará sem o menor problema.
7) João não aprecia fazer as tarefas depois do ALMOÇO.
Provavelmente alguém perguntou: «Mas não é o João que não gosta de fazer as tarefas depois de comer? Ao que obteve a resposta acima, que diz que o problema de João com as tarefas é só depois do almoço; depois do café da manhã ou do jantar, não há restrições, mas, depois do almoço...
Num universo de infinitas frases, imagine a quantidade de possibilidades interpretativas que estão condicionadas à prosódia das frases afirmativas, negativas, interrogativas, exclamativas, irônicas...?
A LÍNGUA é um universo!
A língua É um universo!
A língua é um UNIVERSO!
*A frase e as explicações (adaptadas) foram retiradas do livro Gramática do brasileiro (2008), de Celso Ferrarezi Junior e Iara Maria Teles.
Texto do gramático Fernando Pestana publicado no mural Língua e Tradição em 7 de abril de 2024 no Facebook.