«[A] palavra [alfabeto] é mesmo muito antiga no nosso léxico.»
As conversas são como as cerejas, vêm umas atrás das outras. O mesmo se pode dizer das ideias e dos temas destas crónicas. A primeira ideia para a crónica desta semana foi a educação, pelo facto de, em 2018, a Assembleia Geral das Nações Unidas ter instituído o dia 24 de janeiro como Dia Mundial da Educação. Porém, como as celebrações da UNESCO decorrerão na próxima segunda-feira, dia 25, decidi reservar o tema para a próxima crónica.
Educação fez-me pensar em literacia, termo hoje muito usado, isolado ou inserido em expressões (e.g. literacia matemática, científica, informática, financeira, em saúde...), mas não tenho a certeza de que a generalidade das pessoas entenda perfeitamente o conceito associado, dado o termo ser relativamente novo em português; a ele voltarei. Literacia levou-me a alfabetização, a (an)alfabetismo e a alfabeto. Aqui chegada, decidi não apanhar mais cerejas desta cerejeira de ideias e fazer do alfabeto o tema do meu texto desta semana.
A palavra alfabeto provém do grego e chegou até nós através do latim, como a maioria dos helenismos; o Dicionário Houaiss (DH) refere 1191 como data da primeira atestação e, se considerarmos que os mais antigos documentos escritos em galaico-português são da segunda metade do século XII (provavelmente o Pacto dos Irmãos Pais, e a Notícia de Fiadores, datada de 1175), podemos concluir que a palavra é mesmo muito antiga no nosso léxico. Alfabeto concorre com a palavra abecedário, mais recente (1597, segundo o DH), construída em latim, sua sinónima parcial, que já não ouvia há muito tempo.
Desconhece-se ainda muito sobre a origem dos alfabetos. Acredita-se que tenham tido origem no silabário cuneiforme sumero-acadiano, antes do III milénio a.C., que por sua vez terá estado na origem dos hieróglifos egípcios, entre o III e o II milénios a.C. O alfabeto que usamos, o latino, deriva do alfabeto grego, que terá surgido cerca de oito séculos a.C. O alfabeto cirílico, por seu turno, que a par do grego e do latino constitui a trindade de alfabetos em uso na União Europeia (desde a adesão da Bulgária em 2007), terá sido criado no século IX d.C. e é usado principalmente para escrever línguas eslavas.
A invenção do alfabeto deu origem a uma das maiores revoluções tecnológicas da humanidade. As letras do alfabeto registam os sons da língua (e não já conceitos e palavras, milhares em cada língua, como os logogramas), recorrendo ao chamado princípio alfabético, i.e., para cada som um carácter, o que resulta num sistema de tal modo económico que, com recurso a um número limitado de caracteres, em geral 20 ou 30, permite escrever todas as palavras de uma língua. A simplicidade da escrita alfabética terá sido crucial no aperfeiçoamento da imprensa por Gutenberg no século XV, que, por seu turno, foi determinante para a difusão do conhecimento. Alguns autores realçam, ainda, o papel que os alfabetos terão tido na consolidação das democracias, fruto da expansão da educação, e, alguns defendem, na supremacia do Ocidente sobre o Oriente na história moderna.
O tema que trouxe nesta semana, o alfabeto, poderá parecer a alguns insignificante, qual modesta cerejinha no topo de um apetitoso bolo. Mas é esta cerejinha que torna possível um jornal trazer o mundo às nossas mãos.
Crónica da autora publicada no Diário de Notícias de 18 de janeiro de 2021.