«Fui um noctívago toda a vida. Mas eu gostava da noite? Não. Eu gostava era de estar num horário do contra, onde não houvesse interrupções e sobrasse sossego para ler e escrever e dar asas à imaginação.»
Desde que começou a Primavera, nesse distante dia, tenho acordado muito cedo, apesar de me ter deitado tarde. Delicio-me a ver a madrugada a melhorar até ser manhã.
Ia dizer que esta era uma descoberta dos meus anos dourados: ver nascer o sol sem nascer ao mesmo tempo a irmã siamesa, que era a Ressaca, prima da Urraca e quase tão antiga.
Mas depois percebi que eu já conheço muito bem estas horas – talvez melhor do que alguém deveria conhecer – porque em tempos fizeram parte daquilo a que eu chamava "noite”, só porque começava na escuridão.
Fui um noctívago toda a vida. Se calhar, a culpa era da minha mãe que me acordava às dez da noite para ir ver filmes musicais na televisão. Ou será que eu já estava acordado, a ler debaixo dos lençóis com uma lanterna de bolso, o iPad dos anos 60?
Mas eu gostava da noite? Não. Eu gostava era de estar num horário do contra, em que não houvesse interrupções e sobrasse sossego para ler e escrever e dar asas à imaginação.
Fechava tudo e desatava a fumar, para encher o quarto de fumo e poder concentrar-me mais ainda, respirando nicotina pelo corpo todo.
Não queria saber das horas, do dia ou da noite ou da maneira como o tempo muda quando se está atento.
A minha noctivagia – como é que esta palavra não existe? – era mais diurnofobia do que outra coisa.
Se os nictofóbicos têm medo da escuridão e os uranofóbicos têm medo de lhes faltar bondade para entrar no reino dos céus, eu era mais um nictofónico: uma criatura que só consegue falar quando é noite.
Chego à conclusão que a noctivagia me fez bem, guardando o prazer dos andamentos do dia e da noite para agora, altura em que as posso apreciar.
A noctivagia é uma conta-poupança, como seria a virgindade proposta por Warhol: até aos 40 anos.
N. E. – A forma "noctivagia" é um neologismo curioso e até expressivo pela alusão que faz a compostos de significado disfórico e constituídos por elementos gregos como antropofagia ou necrofagia. Contudo, é formação discutível, porque o elemento -vago do adjetivo noctívago (ambos de origem latina) não se associa a nenhuma forma a nenhuma forma acabada em -ia ou -gia. Na verdade, relacionados com -vago, o léxico disponibiliza, por exemplo, vagueação, («vadiagem, peregrinação»), o que sugere "noctivagueação" como alternativa (com certeza menos expressiva) a "noctivagia".
Crónica incuída no jornal Público, em 27 de março de 2021. Segue a norma ortográfica de 1945.