Réplica do autor à discordância do consulente Fernando Bueno, sobre a resposta A construção impessoal reflexa.
E ainda bem que discorda, Sr. Engenheiro! Nem precisa de pedir licença. Sempre que discordar, faça favor de o dizer, que da discussão pode nascer mais luz. Eu gosto de ser entendido!
Na sua primeira frase, «Mandou-o atender ao pedido», reconhece o Sr. Engenheiro que o pronome, sob a forma de complemento, é sujeito do verbo atender. Ótimo! E reconhece, na segunda frase, que o se, em «deixou-se ficar ao relento», é também sujeito. Melhor ainda!
Ora, a frase«João declarou-se capaz de falar em público» é, sintaticamente, igual à anterior.
Imaginemos que o João não falava de si próprio, mas do Jaime. A frase seria: «O João declarou o Jaime capaz de falar em público.» Sintaticamente, a situação é a mesma.
Suj.: «João»; pred.: «declarou o Jaime (ou -se) capaz de falar em público»; «o Jaime (ou se) capaz de falar em público»: complemento direto.
Antes de darmos mais um passo, analisemos ainda outra frase que torne isto ainda mais evidente:
Numa reunião, e quando falava dum casal amigo, o Pedro disse:
«O juiz declarou-os marido e mulher.»
Suj.: «O juiz»; pred.: «declarou-os marido e mulher»; «-os marido e mulher»: compl. direto.
«-os marido e mulher»: oração reduzida, subordinada, substantiva. [declarou eles marido e mulher; (declarou) que eles são marido e mulher]
Duas notas:
1. Nesta frase, o predicado não é «declarou-os». Isso nada quereria dizer – e em sintaxe não há meios sentidos. As unidades de análise têm de fazer sentido. O predicado é: «declarou-os marido e mulher»; e «-os marido e mulher» é complemento direto. No Brasil, talvez por sensibilidade à presença da oração reduzida, até se diz: «declarou eles marido e mulher» (que eles são, ou se tornaram, marido e mulher). Oração reduzida é isso: um domínio de predicação sem verbo.
2. Ao contrário do que o Sr. Eng. refere, não há nesta frase nenhum predicativo do sujeito, mas poderia haver, assim, por exemplo: «O juiz, sorrindo, declarou-os marido e mulher.» Neste caso, a frase prestaria (predicaria) duas informações a respeito do juiz: que ele os declarou marido e mulher (predicado), e que ele estava sorrindo(predicativo).
Predicativo do sujeito é uma informação opcional a respeito do sujeito ou um atributo referido ao sujeito.
Imaginemos, agora, que o juiz não fala de outrem, mas de si próprio. A frase seria:
«O juiz declarou-se inocente»
Esta frase (composta ou complexa) tem duas orações:
– «Ojuiz declarou-se inocente»: oração principal;
– «-se inocente» [que ele próprio é ou está inocente]: oração reduzida, subordinada, substantiva.
Habitualmente,este tipo de frases é mal analisado, e muitas gramáticas também têm aqui o seu descuido. Analisam:
Suj.: «O juiz»; pred.: «declarou-se inocente»; «se»: *complemento direto; «inocente»: * predicativo do complemento direto.
Mas… esta análise não é aceitável.
Porquê?
O complemento direto é uma função desempenhada por um ou mais constituintes que preencham ou cumulem o sentido do verbo. Ora o se de «declarou-se» não cumula o sentido do verbo. O verbo declarar seleciona um domínio de predicação – uma oração reduzida, formada por dois constituintes, dos quais um é sujeito, e o outro, predicado.
Considere, Sr. Engenheiro, esta frase: «João feriu-se.» Este se cumula o sentido do verbo, é complemento direto, e a frase é gramatical. Mas: * «João declarou-se» – não é gramatical. Já o eria a frase: «João declarou-se inocente», ou «culpado», ou«rei da noite», ou «campeão da alegria»… porque qualquer daqueles domínios predicativos preenche o sentido do verbo.
Penso que podemos concluir:
«João declarou-se capaz de falar em público.»
«João fingiu-se grande cantor do fado de Coimbra.»
Estamos perante duas frases compostas (ou complexas). As formas verbais declarou-se e fingiu-se não são predicado, porque os seus verbos não têm o seu sentido cumulado ou preenchido. Obrigatoriamente, a análise tem de ser:
Suj.: «João»;
pred.: «declarou-se capaz de falar em público»;
«–se capaz de falar em público»: complemento direto [oração reduzida].
Nota:
As orações reduzidas eram, em latim, orações de expressão infinitiva, e o seu sujeito ia para acusativo. O mesmo acontece em português.
Terei sido claro? Suponho que sim. Mas… se o não fui, faça favor de dizer, que… eu gosto de ser entendido.
Cf. O se das construções impessoais reflexas + A construção impessoal reflexa + A construção impessoal reflexa (II) + O clítico «se», as construções passivas e impessoais e os predicativos +Quando "se" é, inequivocamente, um pronome pessoal reflexo com a função de complemento direto