O nosso vocábulo ciclo, que data de 1712, chegou-nos do grego κύκλος (kýklos) por via do latim cyclus. Ora, o significado primordial de kýklos em grego era precisamente «círculo», embora apresentasse outras aceções, entre as quais a de «ciclo». Ainda hoje, em grego moderno, não se distingue «círculo» de «ciclo», pois ambos se dizem kýklos, pelo que aos atuais descendentes do povo helénico não lhes assalta a dúvida que importuna o nosso consulente... e não só. Assim, em grego, chamam φαύλος κύκλος (fávlos kýklos) ao nosso círculo vicioso, que muitos persistem em chamar ciclo, já veremos porquê.
Apesar de estar abonado em dicionários, o vocábulo cyclus não teve grande circulação em latim, como se depreende, por exemplo, do facto de o Lexicon Recentis Latinitatis, publicado em 2004 no Vaticano, recorrer a uma miríade de termos para traduzir o italiano ciclo: orbita, motus cyclicus, motus circularis, motus orbicus, motus periodicus; orbis; cursus; periodicum alternamentum, vicissitudo; temporis portio, saeculum, spatium temporis; fabulae cyciclae, fabularum series, cyclus narrativus, fabularum sequentia, series et complexus fabularum. Ou seja, a pujança que este vocábulo evidencia nas línguas modernas, nas quais se reveste de matizes cada vez mais subtis e diferenciados, não corresponde de forma alguma ao papel secundário que desempenhava em latim. Para exprimir a natureza cíclica de determinado fenómeno, um latinista moderno servir-se-ia preferencialmente do vocábulo vicissitudo, à semelhança de Cícero, que falava (Leg. 2, 16) de dierum noctiumque vicissitudes («a alternância dos dias e das noites»).
Quanto ao nosso termo círculo, que é mais antigo (data do século XV), chegou-nos ele diretamente do latim circulus, o qual, por seu lado, é diminutivo de circus, cujo significado primordial era também «círculo». Com o decorrer do tempo, porém, esta segunda aceção foi sendo relegada para o diminutivo circulus, embora em concorrência com orbis, passando circus a designar preferencialmente a ideia de «recinto de espetáculos», mesmo que este não fosse circular. É por isso que, na obra De Dubiis Nominibus («Os nomes dúbios»), publicada por um autor anónimo no século VII, se defendia que circos antiqui, nunc circulos dicendum («os antigos diziam circos, mas agora devemos dizer circulos»). Apesar desta advertência, o grande historiador João de Barros (c. 1496-1570), no volume III das suas Décadas da Ásia, publicado em 1563, fala de uma pedra que, lançada à água «vai fazendo aqueles circos» (in Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, 2.º vol. 1987, p. 156). Curiosamente, o significado atual de circo («recinto de espetáculos») só aparece registado no século XVI, enquanto a aceção arcaica («círculo») data do séc. XIV.
É conhecida a tendência lusa de enfraquecer ou mesmo omitir as vogais átonas pós-tónicas de palavras esdrúxulas. É por isso que círculo, em linguagem descuidada, apressada ou simplesmente despreocupada, tende a soar como [′siɾklu], pronúncia que faz lembrar a de ciclo, o que poderá justificar, em parte, a confusão no que diz respeito à expressão em apreço. Por outro lado, é habitual a representação de ciclos por meio de esquemas circulares. Basta recordar o chamado ciclo da água, que todos aprendemos nos bancos da escola, ou o ciclo de geração associado à teoria dos cinco elementos da filosofia chinesa.
Todas estas representações nos levam a aceitar e interiorizar que qualquer ciclo está necessariamente associado a uma forma ou movimento circular. Importa, porém, considerar que tais esquemas resultam de meras abstrações mentais, que visam apenas ilustrar o conceito e ajudar‑nos a visualizar o seu funcionamento. Na natureza, na vida real, a água “não anda às voltas”, como o esquema sugere, nem os cinco elementos interagem de forma circular. A característica fundamental de um ciclo é a alternância dos fenómenos que o constituem, a qual poderia ser representada com igual propriedade de forma retilínea. Tal representação, porém, tornar-se-ia menos percetível e não nos permitiria visualizar de forma tão intuitiva a alternância em questão. Por isso recorremos quase invariavelmente a esquemas circulares para o efeito.
A referida alternância não deverá confundir-se com repetição. Num ciclo, não se verifica repetição de fenómenos, mas, sim, alternância. Um exemplo típico é o ciclo das estações. Agora, no início deste mês de fevereiro, estamos todos a tiritar de frio à espera que regresse a primavera. Já o termo regressar, embora cómodo, é ilusório. Na verdade, não se trata propriamente de um regresso, pois a primavera de 2015, muito provavelmente, não será igual à de 2014 no que toca à temperatura, humidade, pluviosidade e outros fenómenos associados. Se a comparássemos com a primavera de 1820, por exemplo, as diferenças seriam provavelmente ainda mais notórias. Trata-se, pois, de “outra” primavera, e não do regresso da anterior, a qual, em boa verdade, é irrepetível.
Além da alternância, um ciclo encerra igualmente a ideia de progresso ou evolução. Voltando aos ciclos das estações, a alternância de apenas quatro estações em cada ano não impediu que o tempo progredisse e que as condições se alterassem ao longo dos séculos e dos milénios, o que não sucederia se este ciclo, como aliás qualquer outro, fosse um esquema circular, fechado e repetitivo, como há quem o queira pintar.
Num movimento circular “puro”, não pode haver progresso nem evolução. Se alguém começar a correr às voltas dentro de um quarto, poderá percorrer desta forma, desde que o corpo aguente, quilómetros e quilómetros de distância, sem nunca sair do quarto. É esta imagem que pretende transmitir a ideia de circularidade inerente à expressão círculo vicioso: repetição e falta de progresso...
Um exemplo típico de círculo vicioso é o seguinte:
A: Coragem é o contrário de cobardia.
B: Cobardia é o contrário de coragem.
Com este tipo de raciocínio, ninguém conseguirá desvendar nem o significado de coragem (partindo de A para B) nem o de cobardia (partindo de B para A). Não conseguirá, porque o esquema está viciado. Se essa pessoa for persistente, percorrerá vezes sem conta este caminho, tanto no sentido A-B como no inverso, como se estivesse a andar às voltas dentro de um quarto, sem nunca sair dele. É esta a imagem que se pretende transmitir com o círculo. É óbvio que, tal como no caso anterior, a circularidade é uma mera abstração mental, que visa facilitar a visualização do fenómeno, pois este poderia igualmente ser representado de forma retilínea, como se segue:
[...] A → B → A → B → A → B → A → B → A → B → [...]
Os parêntesis retos, que ilustram a repetição ad aeternum, evidenciam cabalmente os inconvenientes deste tipo de representação, que o esquema circular, mesmo sendo fruto de mera abstração mental, permite contornar.
Conclui-se então que a circularidade convém tanto à ilustração de um raciocínio vicioso, o qual se caracteriza por repetição e falta de progresso, como de um ciclo, o qual se caracteriza por alternância e progresso. Por isso mesmo, seria mais curial chamar a um raciocínio vicioso apenas aquilo que ele realmente é, ou seja, raciocínio vicioso, sem quaisquer abstrações, mas as línguas são como são, e a expressão círculo vicioso, já enraizada na nossa língua, chegou-nos tal e qual do latim (vitiosus circulus), a mesma fonte onde foram beber muitas outras línguas (vicious circle em inglês, cercle vicieux em francês, círculo vicioso em espanhol, circolo vizioso em italiano, cercle viciós em catalão, vicieuze cirkel em holandês, порочный круг em russo). O alemão, curiosamente, preferiu personificar o vício: Teufelskreis («círculo do diabo»)...
A expressão vitiosus circulus é encontradiça em latim, língua em que se escreveram ou traduziram inúmeras obras de filosofia e teologia ao longo dos séculos. Tornou-se mais frequente a partir do momento em que os pensadores começaram a discordar do grande Aristóteles, em cujos escritos iam detetando um número crescente de raciocínios que apodavam de circulares ou viciosos, por a respetiva conclusão se encontrar entre as premissas. O receio de cometer esse tipo de vício tornou‑se de tal forma obsessivo, que levou alguns eruditos a sentirem a necessidade de justificar convenientemente os seus enunciados, não fosse alguém acusá-los de tal pecha, como é o caso do jesuíta Francisco Suárez (1548-1617), filósofo e jurista, natural de Granada, que, nas suas Disputationes Metaphysicae (2.2.24), publicadas em 1597, teve o cuidado de ressalvar que Haec enim tria, conceptus formalis, obiectivus, et vox, proportionem inter se servant, et ideo ab uno ad aliud saepe argumentamur non quidem vitiosum circulum committendo, sed de unoquoque sumendo quod nobis notius, aut ab aliis facilius concessum videtur («Estes três elementos – o conceito formal, o conceito objetivo e a palavra – mantêm certa proporção entre si, e a nossa argumentação, portanto, costuma partir de um para chegar a outro, não cometendo propriamente um círculo vicioso, mas tomando de cada um o que nos parece mais conhecido, ou mais facilmente admitido pelos outros»)...
Poucos anos mais tarde, em 1617, o filósofo e teólogo basco Pedro Hurtado de Mendoza (1578-1641), também ele jesuíta, nas suas Disputationes de Universa Philosophia (VI, 5, 82), publicadas em Lyon, justificou‑se deste modo: Sic vitatur infinitus processus et vitiosus circulus explicandi obiecta («Assim se evita um processo infinito e um círculo vicioso na explicação dos objetos»)...
Continuando no século XVII, vejamos um exemplo típico de círculo vicioso, pela voz de mais um jesuíta, neste caso Francisco de Oviedo (1602-1651), natural de Madrid, que escreveu assim no seu Integer Cursus Philosophicus, publicado em 1640, também em Lyon (II, p. 262, col. 1): Si ens reale per negationem chimaerae definitur, cum chimaera definiatur per negationem entis realis, vitiosus circulus committeretur («Se definirmos o ser real como negação da quimera, ao mesmo tempo que definimos a quimera como negação do ser real, cometeremos um círculo vicioso»).
Continuando na Península, vou terminar as citações latinas com a notável figura de Juan Caramuel Lobkowitz (1606-1682), também de Madrid mas da Ordem de Cister, filósofo, matemático e polígrafo, a quem se atribuem nada menos que 262 obras (sessenta das quais estão impressas) em domínios tão variados como a gramática, poesia, oratória, matemática, astronomia, arquitetura, física, política, direito canónico, lógica, metafísica, teologia e misticismo. Poliglota, dominava, ao que consta, o latim, grego, árabe, siríaco, hebraico e chinês, entre outras línguas, e preocupou‑se com a ideia da criação de uma língua universal, sobre a qual manteve animada correspondência com outro matemático poliglota, o jesuíta alemão Athanasius Kircher (1601-1680), que também aprendeu chinês para o efeito.
Entre as suas muitas obras, escreveu Juan Caramuel uma bojuda Rationalis et Realis Philosophia, de 478 páginas, dada à estampa em 1642, em Lovaina, na qual bate forte e feio em Aristóteles, depois de se confessar seu admirador (Aristotelem, quem veneror), o que justifica, nas páginas não numeradas da Introdução, com o argumento de veritatis amore («amor à verdade»), acrescentando que amicus ipse, sed magis amica veritas («ele é amigo, mas é mais amiga a verdade»). Mais adiante (p. 114), chega ao ponto de afirmar que haec responsio laborat morbo Aristotelico, hoc est vitioso circulo («esta resposta padece da doença aristotélica, ou seja, do círculo vicioso»).
Apesar desta rispidez, não hesitou em defendê-lo na parte final da obra (p. 375-376), a respeito da famosa definição do estagirita: Tempus est numerus motus secundum prius et posterius («O tempo é o número do movimento relativamente ao antes e ao depois»). Juan Caramuel apresenta primeiro os argumentos dos que defendem a viciosidade deste argumento: Prius & posterius explicantur, quia alias concipi non possent: Tempus ab Aristotele explicatur per prius & posterius: ergo commititur vitiosus circulus («O antes e o depois explicam-se, porque de outra forma não se podem conceber: O Tempo é explicado por Aristóteles por meio do antes e do depois: logo, comete-se um círculo vicioso»). Parece razoável a objeção, mas o sábio madrileno contrapõe: Respondeo dari prius & posterius extra omne tempus: imo in eodem instanti datur rerum ordo: unde vitiosus circulus non committitur ab Aristotele in hac definitione («Respondo que o antes e o depois são dados fora de qualquer tempo: ora no mesmo instante é dada a ordem das coisas: por conseguinte, Aristóteles não comete um círculo vicioso nesta explicação»).
Por último, importa referir que o conceito de círculo vicioso e as suas implicações não perderam vigor nos tempos modernos. Basta referir a importância de que o mesmo se reveste no pensamento de Henri Poincaré (1854-1912), matemático, físico e filósofo da ciência francês, e no de Bertrand Russell (1872-1970), matemático, lógico e filósofo britânico, entre outros. Em 1993, Vernant (La Philosophie Mathématique de Russell) caracterizou engenhosamente o círculo vicioso como uma fórmula autorreferencial e autorreflexiva que dá origem a uma contradição. Dito de outra forma, o círculo vicioso aparece numa proposição quando esta faz referência a si própria no seu enunciado e quando o facto de ela fazer referência a si própria lhe imprime uma forma contraditória. Por isso mesmo, poderá dizer-se que qualquer enunciado autorreferencial contraditório é um enunciado mal formado, ou seja, “vicioso”.
Resumindo, a expressão círculo vicioso é a que está correta, pois reflete uma longa e respeitável tradição filosófica que nos chega pelo latim e exibe pujante continuidade na nossa língua e nos principais idiomas europeus. A expressão ciclo vicioso pode considerar-se uma corruptela da anterior, motivada pela semelhança fonética entre os respetivos substantivos, pela grande popularidade de que gozam os esquemas circulares habitualmente utilizados na representação dos fenómenos cíclicos e pela ignorância dos fundamentos filosóficos inerentes ao conceito que pretende ilustrar.
[Mais esclarecimentos sobre este tema, nos Textos Relacionados, ao lado.]