Em nome do Ciberdúvidas, agradeço ao consulente a vontade de partilhar as suas reflexões por nosso intermédio. Pela minha parte, deixo aqui uns breves comentários a certas passagens do texto enviado.
1. «... a escrita é diferente; a lei obriga a escrever "certo". E é por isto que não entendo porque existe a necessidade de se escrever falámos em Portugal e falamos no Brasil.»
Penso que a diferença que é focada decorre exactamente de "leis" diferentes. Durante mais de 60 anos, distinguiu-se a terminação -amos (1.ª pessoa do presente do indicativo) da terminação -ámos (1.ª pessoa do pretérito perfeito do indicativo) em Portugal na observância do estipulado no Acordo Ortográfico de 1945 (AO45). No Brasil, não havia tal distinção, porque ela não estava prevista no Formulário Ortográfico 1943 (FO43). Recordo que a distinção no AO45 -amos/-ámos não era apresentada como reflexo dos factos de pronúncia de uma variedade em especial; no entanto, o que parece muitas vezes é: a distinção é feita na pronúncia-padrão do português europeu, e muitos consideram que deve ser conservada na tradição ortográfica respectiva. O Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) recorre às facultatividades, para aceitar quer a distinção das terminações quer a sua indistinção, como se pode ler na Base IX:
«4 É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos), já que o timbre da vogal tónica é aberto naquele caso em certas variantes do português.»
O que se estabelece neste apartado é, portanto, um compromisso, mediante uma situação de facultatividade, que os detractores do AO90 consideram constituir a própria negação do que se entende por ortografia.
2. «A pletora de acentos está fazendo com que a escrita digitalizada (praticamente não há mais escrita "manuscrita") leve os preguiçosos da Internet a escrever "nahum" apenas para não ter que digitar o til.»
Não é só o consulente que defende a abolição dos acentos. Já na proposta de Acordo Ortográfico de 1986 se avançava para uma solução desse tipo. Como se sabe, tratou-se de uma iniciativa que grande parte da opinião pública censurou com energia, de tal modo, que, no contexto da história ortográfica da língua portuguesa, o AO90 configura um recuo, porque veio a repor a maioria dos acentos.
Parece-me que os acentos são úteis sobretudo no contexto da aprendizagem, um pouco como acontece com os diacríticos que assinalam as vogais breves na escrita árabe: só em textos litúrgicos e didácticos se usam. É que, embora a escrita não seja um simples meio de transcrição da fala (para isso temos o Alfabeto Fonético Internacional), a verdade é que o tipo de escrita utilizada entre nós, baseada no alfabeto latino, tem como motivação histórica a possibilidade de representar unidades fónicas. Deve também reconhecer-se que a tradição das convenções que ditam uma dada ortografia permite a esta uma certa flexibilidade supradialectal: um lisboeta diz "chpâlho", e um carioca, "ichpêlho", mas ambos escrevem espelho. Quanto ao uso de acentos gráficos (agudo, grave, circunflexo), a sua discussão já vem de longe, porque o seu aparecimento com a Reforma Ortográfica de 1911 não foi pacífica, ao contrário do til, que já estabilizara como sinal de nasalidade. Sobre este assunto, recomendo a leitura de um artigo Maria Helena Mira Mateus, A Natureza Fonológica da Ortografia Portuguesa.