Antes de mais, deve-se esclarecer que as respostas do Ciberdúvidas são dadas por diferentes consultores cujas perspectivas são diferentes: uns enquadram-se na corrente normativa tradicional; outros têm uma formação mais descritivista e podem usar ou não a TLEBS, em função da natureza do tema abordado pela pergunta. É, pois, possível que nas nossas respostas se diga que desfazer e ilegal são palavras derivadas por prefixação, de acordo com a terminologia tradicional e com a Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967.
É certo que análise de desfazer e ilegal não foi ainda feita aqui no Ciberdúvidas de acordo com a TLEBS, mas podemos fazê-lo nesta mesma resposta: quer uma quer outra são palavras formadas por afixação e, mais especificamente, por modificação, uma vez que os afixos nelas intervenientes (os prefixos des- e i-) são afixos que, não alterando as propriedades da forma-base, apenas modificam a interpretação semântica desta. No caso de desfazer e ilegal, dizemos que o valor semântico associado pelos prefixos modificadores é o de negação (fazer/desfazer; ilegal/ilegal).
De notar que a antiga derivação corresponde hoje à afixação na TLEBS, e que derivação, como termo da nova terminologia, se aplica só a um dos dois tipos de afixação (o outro é a modificação).
A respeito dos antigos termos justaposição e aglutinação, convém consultar o documento TLEBS: alterações, destaques propostas, para sabermos a que correspondem eles agora. Nele se constata que aglutinação e justaposição não surgem realmente na TLEBS, havendo uma alteração terminológica que determina uma descrição mais fina (pág. 23). Assim:
1. A antiga designação «palavra composta por aglutinação» corresponde actualmente a dois termos e a duas realidades linguísticas diferentes:
a) palavra lexicalizada – «palavra complexa cuja estrutura (ou interpretação) sofreu alterações que a afastam das palavras formadas por idêntico processo» e que «deixou de ter uma estrutura composicional»1 (ibidem).
P. ex.: vinagre
b) composto morfossintáctico2 (estrutura de reanálise) – «sequência formada por uma forma verbal (geralmente transitiva) flexionada na 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo e pelo núcleo nominal do seu objecto directo»
P. ex.: picapau(s)
c) Refira-se também que os “compostos aglutinados eruditos” (por exemplo, pesticida, psicólogo, arborícola; ou seja, as palavras constituídas geralmente or elementos de formação de origem grega e latina) recebem agora a designação de composto morfológico subordinado.
2. Quanto às antigamente chamadas «palavras compostas por justaposição», além de estas poderem agora ser classificadas – à semelhança das antigas «palavras aglutinadas» – ou como palavras lexicalizadas (fim-de-semana) ou como composto morfossintáctico [estrutura de reanálise como saca-rolha(s); ver o que acabei de dizer em 1(b)], temos três novos termos, que permitem descrever três unidades linguísticas diferentes:
a) composto morfológico coordenado – «estrutura morfológica gerada por coordenação de dois ou mais radicais»
P. ex.: luso-brasileiro(a); plural luso-brasileiros(as)
b) composto morfossintáctico subordinado – «sequência de dois nomes, em que o nome da direita está subordinado ao nome da esquerda»
P. ex.: navio(s)-escola; decreto(s)-lei
Note-se que nestes compostos só o primeiro elemento se flexiona.
d) composto morfossintáctico coordenado – «sequência de dois nomes ou de dois adjectivos que entre si estabelecem uma relação de coordenação, isto é, as palavras têm o mesmo estatuto ou importância»
P. ex.: surdo(s)-mudo(s); sofá(s)-cama(s)
Quer em 1 quer em 2, é de realçar que o uso do hífen nunca é critério para a classificação dos processos de composição.
Vemos, portanto, que não se podem fazer as correspondências que a consulente sugere, porque um dos critérios que permitiam distinguir graficamente palavras justapostas de palavras aglutinadas – isto é, o uso/não uso do hífen – já não é válido. Palavras antes classificadas como aglutinadas (picapau, sem hífen) ou justapostas (guarda-redes, com hífen) podem receber hoje o mesmo termo [picapau e guarda-redes são compostos morfossintácticos].
Por outro lado, se há gramáticas em que se afirma fazer-se uso da TLEBS, ao mesmo tempo que se mantêm os termos aglutinação e justaposição, deve-se verificar se os termos antigos são utilizados criteriosamente. Se ainda forem usados simplesmente a par dos que agora estão a ser introduzidos, sem mais explicação, é óbvio que essas gramáticas estão a contribuir para gerar a confusão terminológica e não são de recomendar. Como não conheço as gramáticas que recentemente surgiram no mercado, resta-me esperar que os seus autores tenham tido bom senso, aplicando com clareza os termos da nova terminologia e sem os misturar com os da antiga nomenclatura na descrição das unidades linguísticas.
1 Por palavra composicional, entende-se uma palavra complexa (p. ex., marcação) «cuja estrutura e interpretação respeitam as restrições e propriedades do processo morfológico que as gerou» (TLEBS: alterações, destaques, propostas, pág. 18): marcação = [marca]tema verbal + [-ção]sufixo, «acção de marcar».
2 Escrevo morfossintáctico, embora no documento em apreço se grafe “morfo-sintáctico”. A forma sem hífen parece-me mais adequada, porque este adjectivo é composto morfológico subordinado (ou seja, um antigo composto aglutinado erudito); sendo assim, é de esperar, de acordo com a ortografia vigente, que as duas raízes de origem grega se associem sem hífen, tal como psicossomático (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua portuguesa, 1966).