DÚVIDAS

O "carriléctrico" de Baptista-Bastos

No mais recente — e primoroso, diga-se de passagem — livro de Baptista-Bastos, A Bolsa da Avó Palhaça, o autor emprega sempre "carriléctrico", em vez de «carro eléctrico», a única forma que vejo dicionarizada. Que me dizem disto os estudiosos da língua?

Resposta

Na perspetiva da gramática tradicional, "carrilétrico" é uma palavra composta por aglutinação, como pontapé ou corrimão. Do ponto de vista da linguística, a forma em questão pode classificar-se como um composto aglutinado que sofreu um processo de lexicalização semântica e formal (cf. M.ª Helena Mira Mateus et alii, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa: Editorial Caminho, pág. 980).

Trata-se realmente de um vocábulo que não está  dicionarizado — nem tinha de estar. O texto literário cria o seu próprio universo, explorando diferentes dimensões linguísticas e representacionais. Desta forma, no caso de A Bolsa da Avô Palhaça (Lisboa, Oficina do Livro, 2007), o neologismo "carrilétrico" reflecte a pronúncia de «carro elétrico» nos meios populares de Lisboa nos anos 40 do século passado. Mas é também um traço individualizador da personagem da Avó Palhaça, que o narrador evoca carinhosamente e com quem chega a identificar-se, quando ele próprio adopta esse termo na narração. Vejamos em que contextos surge a palavra:

(1) «As pessoas acordavam muito cedo, sonolentas, lavavam a cara apressadamente [...], apanhavam o carrilétrico-operário, bilhete de ida e volta, um tostão e meio, só até às 7 e 30 da manhã.» (pág. 16)

(2) «Quando desci a colina da Ajuda e me instalei naquele bairro da Bica, a meio da cidade, após uma soturna viagem de carrilétrico, o meu pai prendeu a minha mão na sua [...]» (pág. 19)

(3) «Pouco antes de abandonar o bairro, a Gracinda ia com o filho num carrilétrico da carreira Ajuda-Rossio [..], eis que, na curva para a Boa Hora, o elétrico descarrilou [...].» (pág. 33)

(4) «Um dia hei-de pegar em ti e vamos de carrilétrico até ao Dafundo», dizia de vez em quando, a minha avó.» (pág.  36)

(5) A sua ideia era apanhar, no Terreiro do Paço, um daqueles carrilétricos abertos e enormes [...]. No Dafundo, uma placa giratória dava volta ao carrilétrico [...].» (págs. 36/37)

(7) «E já não temos tempo de andar de carrilétrico até ao Dafundo.» (pág. 46)

É curioso verificar que em (3), retomando anaforicamente a referência ao "carrilétrico", é o termo consagrado, ou seja, elétrico, que o autor-narrador emprega uma única vez, como se fosse um termo mais neutro, equivalente ao simples pronome ele.

É, pois, intencionalmente que a forma "errada" é usada, sublinhando-se assim o seu valor afectivo, que é contextualizado pelas ocorrências em (4) e (7), relativas ao discurso da Avó. Para esta, o passeio de "carrilétrico" foi um sonho que o tempo levou. Digamos então que a ocorrência de "carrilétrico" se inscreve também como símbolo não só da condição social das personagens deste livro mas também das suas vivências e dos seus sonhos.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa