Os falares da ilha Terceira - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os falares da ilha Terceira
Os falares da ilha Terceira
Limpa-pingas, sueras e moquenca

A variação do português europeu é, há muito tempo, estudada, mas nas últimas décadas os trabalhos de investigação têm revelado grandes transformações que, no continente, decorrem da concentração demográfica no litoral. As regiões insulares não são alheias à mudança, mas, pelo menos no caso dos Açores, ainda têm vitalidade os falares locais.

Para muitos continentais, os falares micaelenses tornaram-se o estereótipo do chamado falar açoriano, ideia que o contacto assíduo e o exame atento revelam ser um mito. Além de São Miguel, as outras ilhas açorianas têm as suas especificidades, sobretudo fonéticas e lexicais, como bem ilustra o material que, nas redes sociais, se vai acumulando sobre a ilha Terceira.

Um estudo de Fernando Brissos, Raïssa Gillier e João Saramago1 revela que, por muito tempo, os dialetos insulares foram tratados como um prolongamento dos dialetos do sul de Portugal continental, devido a alguns traços fonéticos comuns. Contudo, a pesquisa atual mostra que os dialetos açorianos, incluindo os da Terceira, devem ser considerados um grupo distinto, com características próprias que os separam dos dialetos continentais.

No caso da Terceira, um dos fenómenos mais marcantes é a harmonização das vogais tónicas, que, embora partilhe semelhanças com algumas características do sul de Portugal, distingue claramente o falar terceirense. A dialetologia assinala que os falantes desta ilha tendem, por exemplo, a pronunciar cidade como "cidiade" e oitenta como "oitienta". É fenómeno devido ao facto de a vogal i das sílabas pretónicas ci- de cidade e oi- de oitenta levar à formação de uma semivogal com o mesmo timbre antes da vogal tónica das duas palavras (-da- > "-dia" em cidade, e -ten-> "-tien-" em oitenta). A harmonização também envolve o timbre u, e, assim, fumar passa a "fumuar", por ação do u da sílaba fu- sobre o a da sílaba tónica -mar. Esta especificidade fonética, junto com outras particularidades regionais, contribui para a vitalidade do falar local e a preservação da identidade linguística da Terceira2.

Entende-se, também, que nos últimos tempos, muito se tem discutido sobre a variação lexical açoriana, uma dimensão que, ao longo dos anos, foi negligenciada em favor da fonética. No entanto, cada vez mais, a riqueza lexical da Terceira tem vindo a ser divulgada e apreciada, nomeadamente através de iniciativas como o trabalho da atriz Maria Duarte, a qual, no Instagram, tem partilhado expressões típicas da Terceira, muitas das quais refletem a singularidade do vocabulário desta ilha.

Exemplos como limpa-pingas para limpa-para-brisasbolacha para estalo, frizas para congelador, sueras para «camisolas quentes», ou «prisões de roupa» para «molas de roupa» aparecem nos seus vídeos, ilustrando a riqueza e a diversão que as palavras e expressões locais podem proporcionar. Outras expressões dão conta do modo descontraído e autêntico de comunicar que caracteriza o povo terceirense: «dar a fervoleta» para «ficar irrequieto»; «bota sentido» para «toma atenção»; moquenca para «pessoa sonsa»; «tanto lindinha/tanto riquinha» para «tão bonitinha»; «passa fora» para «sai daqui»; «fica num leilão» para «ficar desarrumado»; «fazer negaças» para «provocar alguém»; pinchar para pular ou saltar; «ai, boca santa» para quando alguém tem razão; «ficar cambado» para «ficar torto»; «ficar num leilão» para quando está tudo desarrumado; trincar-se para entalar-se; canadas para «ruas pequenas»; «ah, tatão» para quando alguém age de forma tonta; e «acaçapa-te bem» para «agasalha-te bem». Estes exemplos da riqueza de um vocabulário que se distancia do português padrão confere, de facto, uma identidade própria aos habitantes da ilha.

A diversidade lexical não é, portanto, apenas uma curiosidade linguística, mas parte essencial da cultura terceirense. As expressões que Maria Duarte partilha no seu Instagram ajudam a perpetuar essas formas de falar e a divulgar a riqueza da linguagem açoriana fora dos círculos académicos. E para documentar este contributo, fica um vídeo da atriz com alguns esclarecimentos certamente bem úteis para muitos continentais:

 

 

 

1 Aproximacións á variación lexical no dominio galego-portugués, 2017. 

2 Sobre os traços fonéticos diferenciadores dos falares da Terceira, ver Luísa Segura, "Variedades Dialetais do Português Europeu" in Eduardo B. Paiva Raposo et alii, Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 112/113.

Sobre a autora

Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.