Pergunta:
Ao longo dos séculos, a ortografia nas diversas edições de Os Lusíadas evoluiu.
Por exemplo, “Occidental praya” passou a ser «Ocidental praia»,” “Daquelles reis” passou a «Daqueles reis», "A fee, o imperio” passou a ser «A fé, o império», “forão dilatando” passou a ser «foram dilatando». Todos estes casos são evidentes e sem controvérsia.
Uma outra alteração surge no final da primeira estrofe: «entre gente remota edificarão….que tanto sublimarão» passou a ser «entre gente remota edificaram …que tanto sublimaram».
Esta alteração parece ser também banal. Mas é mesmo incontroversa?
Será que o poeta não queria terminar a primeira estrofe no futuro?
Se a estrofe terminasse no futuro e não no pretérito, o texto teria sentido: ele vai cantar os primeiros grandes navegadores portugueses (Vasco da Gama e companheiros) que passaram além da Taprobana e que posteriormente à narrativa – ou seja no futuro -- vieram a edificar e sublimar.
Note-se também que nessa primeira estrofe, na primeira edição surge «passaram ainda alem da Taprobana» e não «passarão ainda alem da Taprobana». Assim, duas perguntas concretas:
1/ Se no final do século XVI, o pretérito se escrevia como “edificarão / sublimarão ,” como se grafava o mesmo verbo no futuro (ou seja como se distinguiam as palavras que agora grafamos como edificaram e sublimaram?
2/ Que certeza temos que o poeta desejou terminar a primeira estrofe no pretérito e não no futuro?
Resposta:
É pela métrica que se sabe que edificarão e sublimarão são hoje edificaram e sublimaram.
Com efeito, Os Lusíadas são constituídos por versos decassilábicos. A contagem das sílabas métricas faz-se sempre até à sílaba tónica da última palavra do verso. Se as formas em questão fossem as do futuro, os versos deixariam de ser decassílabos e passariam a ter 11 sílabas, quebrando a regularidade métrica da estrofe. É, portanto, muito pouco provável que o poeta pretendesse introduzir a irregularidade métrica no seu poema, sobretudo, logo no começo de Os Lusíadas.
Por outro lado, pelo contexto também se infere que as formas são as do pretérito perfeito, e não as do futuro.
Na primeira estrofe, a que pertencem esses dois versos, lê-se: «Passaram, ainda alem da Taprobana [...] mais do que prometia a força humana» Pondo por hipótese que passaram era alguma grafia variante do que hoje escrevemos passarão, chega-se à conclusão de que se trata do pretérito perfeito, porque o verso «mais do que prometia a força humana» apresenta um verbo no imperfeito do indicativo, que coloca a ação no passado. Por outras palavras, não é plausível que o poeta quisesse dizer «eles hão de passar ainda além da Taprobana» no futuro e depois determinasse temporalmente uma ação futura com «mais do que prometia [naquela época] a força humana», que situa a ação no passado.
Acresce que, na segunda estrofe, ocorre a forma forão (hoje foram), no pretérito perfeito do indicativo, reforçando a indicação de que o sujeito poético se propõe cantar (sobretudo) factos passados, mais ou menos recentes.