Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A pergunta é se há estudos sobre a hipótese de Sande e Sendim serem topónimos celtas?

Leigamente, parece haver indícios de serem parte do substrato. Estes são topónimos foneticamente próximos extremamente comuns nos territórios da Galécia, como Sande em Lamego, ou mesmo o vizinho de Sendim da Serra, Sendim da Ribeira. Um pouco mais a sul, encontramos Sinde em Tábua. Encontram-se desde as Beiras até ao extremo norte da península. Para Sande especificamente, é comum serem atribuídos à antroponímia (que não poderá vir ela mesma de toponímia)?

Num rápido estudo leigo; no celta insular galês, encontramos dinas para «cidade» e din para «castro» / «forte» (Pierre-Yves Lambert, La Langue gauloise). Sena é nome celta/túrdulo de Seia, mas sem sabermos significado original. Noto que no protocelta sindos seria «isto» – cf. https://en.wiktionary.org/wiki/Reconstruction:Proto-Celtic/sindos e https://en.wiktionary.org/wiki/san. Algo simploriamente, ficaria algo como "sindodin" ou "sandodin", «esta cidade».

Adicionalmente:

Diz-nos Pinho Leal, no seu Portugal Antigo e Moderno: Diccionario, «a todas as freguesias a que hoje se dá o nome de Sendim e Sindim se chamava antigamente Sandim».

presúrias autorizadas por reis e notáveis do reino alto-medieval galego-asturo-leonês. Esta é a hipótese mais provável que Piel defende e documenta solidamente e que Almeida Fernandes não parece contestar globalmente (pode é criticar no pormenor).

Quanto a Pinho Leal, sem rejeitar a importância da sua obra Portugal Antigo e Moderno, sobretudo pelo registo de lendas à volta da toponímia, é, no entanto, um autor ultrapassado pelo trabalho científico de Leite de Vasconcelos, Joaquim da Silveira, Ferraz de Carvalho, José Joaquim Loureo, entre outros investigadores, muitos deles com trabalhos publicados na Revista Lusitana e em O Instituto. Mais tarde, os trabalhos dos já mencionados Piel e de Almeida Fernandes, aos quais se junta Pedro Cunha Serra, são marcantes, sobretudo os do primeiro, no que toca a toponímia de origem germânica. Mais recentemente, para os estudos da toponímia mais arcaica, das épocas pré-romana e romana, destacam-se os trabalhos de Amílcar Guerra e de Jorge de Alarcão.

Quanto aos topónimos em questão, segue-se a cada uma breve atribuição etimológica:

– 

Pergunta:

As palavras cultura e solidário devem ser consideradas palavras complexas ou simples?

Resposta:

Cultura e solidário são palavras complexas.

A palavra cultura formou-se em latim, e, apesar de -ura ser sufixo ativo no português atual, é preciso considerar que, na língua portuguesa, cultura não se formou de culto, ao contrário de amargura, que se aceita como formado e derivado de amargo em português. Quanto a solidário, parece derivar de sólido, mas a verdade é que a palavra não preserva a ideia de sólido que tem em português, muito pela razão de ser adaptação do francês solidaire, vocábulo formado com elementos de origem latina (o francês é uma língua latina).

Não são estas palavras, portanto, os melhores exemplos para o estudo da diferença entre palavras simples e palavras complexas. Com efeito, é verdade que cultura se relaciona com culto e solidário, com sólido, mas tem de se dar atenção à história destas palavras.

Pergunta:

Apesar de estar no Priberam, tenho dúvidas se é correto usar este verbo em Portugal.

Podem confirmar?

Obrigada.

Resposta:

É um uso discutível, que deve ocorrer em contextos muito limitados, por exemplo, na linguagem da economia.

É a adaptação do inglês to productize (ou productise), que significa «transformar qualquer coisa em produto comercial».

Há quem traduza productize pela perífrase «transformar alguma coisa em produto»:

(i) «Just because you can invent something doesn't mean you should "productize"» = «Só porque você pode inventar alguma coisa, isso não significa que você deva transformá-la em um produto» (tradução brasileira; fonte: Reverso).

Pergunta:

Aproveito para reiterar o meu mais sincero agradecimento à fantástica equipa desta aplicação!

O assunto que me leva a publicar esta pergunta é alusivo ao termo segundo. Não me refiro ao adjetivo numeral, mas sim a uma possível conjunção.

A minha dúvida é se se pode empregar no sentido de uma sequência de algum evento como nestas frases:

«Segundo avançava até à porta, a mente dela apenas pensava no caso clínico do utente.»

«Segundo ingeria metade da dieta instituída, uma repentina palidez aflorou no rosto dele.»

Sei que se poderia dizer enquanto, «à medida que» ou «ao passo que», contudo, embora não saiba se se pode usar neste sentido, ou se o mesmo é correto, acho que me soa bem.

Podem elucidar-me, por favor? Obrigada!

Resposta:

Segundo pode ocorrer como conjunção:

(1) «segundo reza a história...» = «conforme reza a história»

Apesar de os dicionários registarem o uso de segundo, com o sentido de «à medida de» – «entrem, por favor, segundo a ordem de chegada»1 –, parece pouco ou nada corrente que a palavra ocorra a introduzir oração que denote uma ação gradual:

(2) OK «Conforme/À medida que ingeria metade da dieta instituída, uma repentina palidez aflorou no rosto dele.»

(3) ? «Segundo ingeria metade da dieta instituída, uma repentina palidez aflorou no rosto dele.»

As duas possibilidades indicadas no exemplo (2) são aceitáveis, enquanto o exemplo (3) se afigura estranho.

Em suma, não se recomenda o uso em (3).

 

1 Nesta situação, a palavra segundo pode ser interpretada como preposição: «entrem, por favor, por ordem de chegada». Agradeço a Edite Prada esta observação.

 

N. E.  – O terceiro parágrafo foi alterado em 07/10/2024.

Pergunta:

Quando e por que a refeição secundária recebeu o nome de sobremesa? A refeição principal também fica «sobre a mesa»!

E não é coisa só do idioma português, não: em inglês = overtable; e em espanhol = sobremesa!

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Ao que parece (cf. Dicionário Houaiss), a denominação da parte final de um almoço ou jantar – sobremesa – deve-se à característica dessa parte da refeição – a de ocorrer depois de ("sobre") os pratos principais terem sido servidos à mesa.

Não se confirma que "overtable" se use em inglês como equivalente a sobremesa. Existe, no entanto, a forma overtable («manifestável», «explicitável»), um derivado de overt («manifesto, explícito»).

Quanto a sobremesa em espanhol, há de facto tem registo nos dicionários, mas não no sentido do português. Trata-se de ficar à mesa após a refeição.

Como muita gente saberá, postre é o termo espanhol correspondente ao português sobremesa, que parece motivado por uma perspetiva semelhante, visto que tem origem no latim posterem, que significava «o que vem despois» (cf. dicionário da Real Academia Espanhola).