Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É muito frequente abordar nas minhas leituras e subsequentes traduções as expressões que, em inglês, mobilizam a expressão turn. Fala-se, por exemplo, de «linguistic turn», «mimetic turn», «performatic turn», e por aí afora, para referir momentos peculiares de transformação do pensamento e de florescimento de campos de estudos em determinadas áreas ou disciplinas filosóficas, sociológicas, ou científicas de um modo geral. A tradução desta expressão, no entanto, não é evidente. Fico sugestionada pelas possibilidades «viragem» ou «virada», mas gostaria de saber a vossa opinião relativamente a esta questão.

Desde já muito grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Quando se fala de uma mudança ou reviravolta política ou cultural, o vocábulo corrente em Portugal é viragem, como se regista no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: «mudança de ação, conduta, comportamento: "A política naquele país está a fazer uma viragem à esquerda."; "as previstas alterações na política fiscal são ‘um avanço’, mas ‘não ainda uma viragem’" (DN, 22.10.2000).»

Note-se, aliás, que se regista a expressão «ponto de viragem» como decalque do inglês turning point:

 (1) «Mas nem uma palavra sobre o que anos depois foi dado como ponto de viragem, um trauma» (Maria Velho da Costa, Missa in Albis, 1988, em Corpus do Português)

No Brasil, dicionários como o Houaiss registam virada, na aceção de «mudança súbita e radical numa situação, num movimento, num comportamento; guinada».

Pergunta:

Como explicar, de forma convincente e com base morfossintática sólida, a mudança da vogal temática de o para a no par saco/saca, sendo que a origem etimológica comum remonta ao latim saccus, -i, e ainda mais remotamente ao grego sákkos e ao hebraico sak, todos invariavelmente com vogal final fechada e masculina?

Estaríamos diante de um fenômeno morfológico legítimo ou de uma analogia sem base histórica consistente?

Obrigado.

Resposta:

A alternância entre os índices temáticos -a e -o tem certa produtividade para indicar diferença de forma entre os referentes de substantivos concretos. É um processo legítimo, que não tem de ser legitimado pela etimologia mais remota 

Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (39.ª edição, 191/940), no capítulo onde fala sobre a formação do feminino e os valores associados a este género, observa o seguinte:

«É pacífica, mesmo entre os que admitem o processo de flexão em barcobarca e loboloba, a informação de que a oposição masculino – feminino faz alusão a outros aspetos da realidade, diferentes da diversidade de sexo, e serve para distinguir os objetos substantivos por certas qualidades semânticas, pelas quais o masculino é uma forma geral, não marcada semanticamente, enquanto o feminino expressa uma especialização qualquer:

barco / barca (= barco grande)

jarro / jarra (um tipo especial de jarro)

lobo / loba (a fêmea do animal chamado lobo)» 

Atualmente, pode parecer discutível defender que a forma de masculino é forma geral. Em todo o caso, importa assinalar que, geralmente, a forma com -a indica um objeto ou uma entidade de maior volume relativo. A forma de masculino pode denotar o objeto de menores dimensões e pode ser formado a partir da forma de feminino, como parecem confirmar as notas etimológicas do Dicionário Houaiss:

bolso < bolsa

cesto < cesta

chinelo < chinela

<i>Misticismo</i>, <i>mística</i> e estádios
A propósito da Taça de Portugal em 2025

No final de mais uma época de futebol em Portugal, a euforia dos campeões e o desgosto dos derrotados levam o discurso jornalístico a ativar palavras e expressões de vários campos lexicais, entre eles, o da espiritualidade. Fala-se por exemplo, do «misticismo do estádio do Jamor», expressão que motiva este apontamento do consultor Carlos Rocha.

 

Pergunta:

Gostaria de tirar uma dúvida acerca da classificação do sujeito dos verbos no infinitivo impessoal.

Encontrei algumas divergências nessas classificações: em alguns lugares, classificam como sujeito inexistente; já em outros, como um tipo de indeterminação do sujeito. Qual das duas acepções está corretas? Ou ambas estão e irá depender do contexto?

Considere o seguinte exemplo:

«Deve ser divertido fazer quadrinhos!»

Entendo que «fazer quadrinhos» é o sujeito oracional da locução «deve ser». Mas em relação ao sujeito do verbo fazer, qual seria a classificação adequada? Sujeito inexistente? Ou indeterminado?

Se houver indicação de algum material de leitura para aprofundamento desse aspecto específico, agradeceria bastante!

Obrigada desde já!

Resposta:

Em orações de infinitivo impessoal, considera-se que o sujeito é indeterminado. O sujeito da oração «fazer quadradinhos» é, portanto, indeterminado.

Para falar de sujeito inexistente, é preciso que numa oração ocorra um verbo impessoal: «chove; há flores no campo; faz oito dias; era verão» (Dicionário Houaiss). Não é o caso.

Na perspetiva do Brasil, consulte a Gramática para Concursos Públicos, de Fernando Pestana.

Sobre o assunto, consulte também os Textos Relacionados.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o uso que a expressão «de cabeça para baixo» tem aqui em Portugal.

É uma expressão que nunca utilizei mas que tenho ouvido nos últimos tempos. O que consegui perceber em pesquisas que fiz foi que será uma expressão brasileira, mas quem a utiliza diz que não.

Obrigado.

Resposta:

Não é uma expressão especificamente brasileira. Na verdade, tem uso corrente no português de qualquer país lusófono.

Sabe-se que não é exclusivamente brasileira porque ocorre atestada há muito tempo em textos de autores de Portugal, pelo menos, desde começos do século XVII, conforme se pode confirmar pela consulta do Corpus do Português. Por exemplo, na Peregrinação (1603), de Fernão Mendes Pinto:

(1) «o qual no meyo de hu circulo tinha pintado hum homem quasi da feiçaõ de hum càgado cos peis para cima & a cabeça para baixo»

Figura também em textos do Padre António Vieira:

(2) «Ou pode haver homem de tão pouco juízo que se lhe meta na cabeça que há homens que andem com a cabeça para baixo...?» (História do Futuro, 1667)

Encontramos ainda expressão em Almeida Garrett (Arco de Sant'Ana, 1845-1850):

(3) «– E o bispo enforcado. – Com a cabeça para baixo, por causa dos santos óleos.»