Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao longo dos séculos, a ortografia nas diversas edições de Os Lusíadas evoluiu.

Por exemplo, “Occidental praya” passou a ser «Ocidental praia»,” “Daquelles reis” passou a «Daqueles reis», "A fee, o imperio” passou a ser «A fé, o império», “forão dilatando” passou a ser «foram dilatando». Todos estes casos são evidentes e sem controvérsia.

Uma outra alteração surge no final da primeira estrofe: «entre gente remota edificarão….que tanto sublimarão» passou a ser «entre gente remota edificaram …que tanto sublimaram».

Esta alteração parece ser também banal. Mas é mesmo incontroversa?

Será que o poeta não queria terminar a primeira estrofe no futuro?

Se a estrofe terminasse no futuro e não no pretérito, o texto teria sentido: ele vai cantar os primeiros grandes navegadores portugueses (Vasco da Gama e companheiros) que passaram além da Taprobana e que posteriormente à narrativa – ou seja no futuro -- vieram a edificar e sublimar.

Note-se também que nessa primeira estrofe, na primeira edição surge «passaram ainda alem da Taprobana» e não «passarão ainda alem da Taprobana». Assim, duas perguntas concretas:

1/ Se no final do século XVI, o pretérito se escrevia como “edificarão / sublimarão ,” como se grafava o mesmo verbo no futuro (ou seja como se distinguiam as palavras que agora grafamos como edificaram e sublimaram?

2/ Que certeza temos que o poeta desejou terminar a primeira estrofe no pretérito e não no futuro?

Resposta:

É pela métrica que se sabe que edificarão e sublimarão são hoje edificaram e sublimaram.

Com efeito, Os Lusíadas são constituídos por versos decassilábicos. A contagem das sílabas métricas faz-se sempre até à sílaba tónica da última palavra do verso. Se as formas em questão fossem as do futuro, os versos deixariam de ser decassílabos e passariam a ter 11 sílabas, quebrando a regularidade métrica da estrofe. É, portanto, muito pouco provável que o poeta pretendesse introduzir a irregularidade métrica no seu poema, sobretudo, logo no começo de Os Lusíadas.

Por outro lado, pelo contexto também se infere que as formas são as do pretérito perfeito, e não as do futuro.

Na primeira estrofe, a que pertencem esses dois versos, lê-se: «Passaram, ainda alem da Taprobana [...] mais do que prometia a força humana» Pondo por hipótese que passaram era alguma grafia variante do que hoje escrevemos passarão, chega-se à conclusão de que se trata do pretérito perfeito, porque o verso «mais do que prometia a força humana» apresenta um verbo no imperfeito do indicativo, que coloca a ação no passado. Por outras palavras, não é plausível que o poeta quisesse dizer «eles hão de passar ainda além da Taprobana» no futuro e depois determinasse temporalmente uma ação futura com «mais do que prometia [naquela época] a força humana», que situa a ação no passado.

Acresce que, na segunda estrofe, ocorre a forma forão (hoje foram), no pretérito perfeito do indicativo, reforçando a indicação de que o sujeito poético se propõe cantar (sobretudo) factos passados, mais ou menos recentes.

Acentos, anglicismos <br> e impropriedades vocabulares
Erros e equívocos pela televisão

"Sózinho", "amenidades" (hoteleiras) e uma "cidade-berço" (para imigrantes) são três dos erros e equívocos que sempre ocorrem no incansável trabalho informativo da televisão. O consultor Carlos Rocha analisa cada um destes casos.

Pergunta:

Os dicionários da Priberam e da Infopédia registam pretérito como adjetivo, no sentido de «passado». Como nome é só o tempo verbal. Já o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista o nome pretérito com o sentido de «passado».

Posso usar pretérito como nome?

Um exemplo: «O pretérito era duro, não havia muito do que há nos nossos dias.»

Resposta:

Pretérito pode ser usado como nome e é, portanto, sinónimo de passado, ainda que se trate de uso menos corrente, fora do que ocorre quando se fala da classificação dos tempos da conjugação verbal:

(1) «Tão longa foi a sua penitência de lágrimas, que só à beira da meia-noite seus olhos voltaram a secar. Manteve-se-lhe a mesma serenidade, até mais acentuada, como se nada tivesse pensado e vivido até esse momento. Porém, num ápice, o pretérito, numa desfilada nítida e impressionante, voltou a apresentar-se-lhe. (António Guedes de Amorim, A Máscara e o Destino, 1944, em Corpus do Português).

Pergunta:

Sempre pensei que, em Portugal, se escrevesse sempre descolonizar e não "decolonizar". No entanto, acabo de deparar com uma obra intitulada Decolonizar o Museu, publicada pela Orfeu Negro.

Como se trata de uma boa editora, questiono-me se também se poderá escrever "decolonizar".

Obrigado.

Resposta:

Ao que sabemos, em certas áreas académicas e em certos países – por exemplo, no Brasil –, usa-se o adjetivo decolonial a par do verbo decolonizar, e estas formas não significam exatamente o mesmo que descolonizar.

Dicionário Priberam regista decolonizar como brasileirismo e variante de descolonizar, forma que não deixa de ser usada no Brasil e parece até mais corrente. Mas assinale-se que no Brasil há formas em que se prefere de- em lugar de des-, como regista o Dicionário Houaiss: descodificar/decodificar; descolar/decolar.

Mas uma pesquisa Google permite apurar que decolonizar é uma forma que, em certos meios académicos, tem validade, não exatamente como sinónimo de descolonizar. Por exemplo:

(1) «O termo decolonialismo – ou decolonialidade – significa o conjunto de práticas, conceitos, pesquisas e estudos que tentam diminuir, e até reverter, os efeitos da colonização nas sociedades em que este processo histórico ocorreu. Decolonialismo é diferente de descolonização. Enquanto a descolonização se refere às lutas das colônias africanas, asiáticas e latino-americanas para se tornarem independentes das respectivas metrópoles, o decolonialismo tem como princípio que a independência política não acabou com instituições, hábitos e práticas coloniais.» (Alexandre Barbosa, "O que é decolonialismo?

Pergunta:

Ando a aprender o tema das horas e dos horários em português europeu e, até agora, tudo estava claro para mim relativamente a expressões como «à uma hora / às duas horas / ao meio-dia / à meia-noite».

No entanto, comecei a pensar em outros exemplos em que o número de minutos é superior a 30. Quando respondemos simplesmente à pergunta «Que horas são?», podemos usar as frases como:

1) É um quarto para as dez. (09.45)

2) São dez para as três. / São três menos dez. (14.50)

3) É um minuto para as quatro. / São quatro menos um minuto (15.59)

E por aí fora.

A minha dúvida é: que preposição devo usar (contraída ou não) quando quero dizer que algo acontece a essas horas?

Num vídeo no YouTube vi um exemplo tipo "à um quarto para as dez", mas em outra fonte para os aprendentes de português europeu responderam-me que a forma correta é «a um quarto para as dez».

Sendo assim, queria pedir a vossa ajuda e explicação para entender a regra.

Além disso, foi-me dito que, nos exemplos como 2 e 3, a contração da preposição vai depender da presença ou ausência da palavra minuto(s). Por exemplo:

2) às dez para as três / a dez minutos para as três.

3) à um para as quatro / a um minuto para as quatro.

Esta explicação está correta? Se sim, os falantes nativos usam estas expressões no dia a dia ou optam por opções «às três menos dez» (exemplo 2) e «às quatro menos um minuto» (exemplo 3).

Muito obrigada, desde já, pela vossa explicação!

Resposta:

Depois da meia hora, no registo corrente em Portugal, existem duas maneiras de indicar os minutos que faltam para a hora:

A. [minutos] para [hora]

(1) são dez para as três

(2) é um quarto para as três

Quando se indica a hora de um encontro ou de qualquer realização, usa-se a preposição a do seguinte modo:

(3) o concerto começa às dez para as três

(4) o concerto começa a um quarto para três.

Em (4), note-se que se diz e escreve a, e não à, forma que é impossível com quarto, nome masculino]

B. [hora] menos [minutos]

(5) são três menos dez

(6) são três menos um quarto

Quando se emprega a preposição a, obtém-se:

(7) O concerto começa às três menos dez.

(8) O concerto começa às três menos um quarto.