» (...) A Galiza não são só os caminhos de Santiago. Ela é mais «nossa» do que julgaríamos, mas é também, radicalmente, mais «deles» do que costumamos supor. Parece justo pô-la na montra, a essa Galiza irreverente, grávida de futuro, senhora de si. (...)»
Na península que habitamos, na Europa, mesmo no mundo inteiro, nada nos é mais próximo do que a Galiza, nada deveria ser-nos, também, mais caro. Temos ali uma irmã: na cultura, no idioma, no modo de ser. Por ali se prolongam tranquilamente as nossas paisagens. Foi dali que, num dia longínquo, nascemos como país, depois de séculos em que o nosso Norte era somente o Sul da Galiza. E, todavia, muito disso é quase um segredo. Atravessamos o Minho, e informamos garridamente para casa: «Já cheguei à Espanha.» Os galegos estimariam (e muitos espanhóis esperariam) que comunicássemos: «Já estou na Galiza.»
É isso, projectamos sobre a Espanha o que nós próprios julgamos ser, desde tempos imemoriais: um estado, um país, um povo, uma língua, uma nação. Custa-nos perceber que aqui ao lado se foi formando um conglomerado de nações, de idiomas. Somos sensíveis ao «glamour» da monarquia vizinha (cujos namoros e partos as nossas revistas do coração seguem fascinadas) e o «Reino de España» acabou por ser-nos natural e óbvio, mais que a alguns dos seus súbditos. Não bastando isso, um ministro português chegou a declarar-se, com inaudito à-vontade, e em plena capital da Galiza, «um iberista convicto». Escusado dizer que muitos espanhóis não nos entendem.
É-nos difícil, está visto, apreender a exacta peculiaridade galega. Sem dúvida: uma independência política da Galiza poderia contar, entre nós, com um entusiasmo talvez esfuziante. Essa Galiza ser-nos-ia entendível. Mas já nos pede outra ginástica mental vê-la como território que, chamando-se altivamente «país» e «pátria», e sonhando ver-se reconhecida «nação», deseja também viver integrada no Estado espanhol. A Galiza abre-se-nos, assim, como uma realidade complexa. E as coisas são, é preciso dizê-lo, um pouco mais complicadas ainda.
Um crescente conhecimento do passado e do presente galegos virá minar-nos algumas certezas. Virá confrontar o nosso secular autocomprazimento com interrogações inesperadas, talvez incómodas. Alguns exemplos triviais. Proclamamos, com íntimo alvoroço, que, sem os portugueses, o Mundo teria ficado privado de três maravilhas: a da saudade, a do infinito pessoal e a das cantigas de amigo. Em doridos fados, em engenhosos ensaios, miramos e remiramos essas dádivas dos deuses.
É um espectáculo deprimente. Porque tudo isso, e bastante mais, trouxemo-lo do fornecido celeiro de origem, onde já se tinha inventado a saudade (a palavra e a coisa), onde já o infinito pessoal se fizera corrente (e, à cautela, se assegurara o futuro do conjuntivo) e onde se começava a internacionalizar a cantiga de amigo, o género mais «in» a toda a largura norte da Península. Houve bons trovadores portugueses, como o excelente Dinis, rei nosso. Mas a maior e melhor produção era a galega, já então literatura estrangeira.
Escondemos isso e mais. A história da língua, costumamos expô-la como saga nossa, produto de heróica e portuguesíssima inventividade. Ora, a custosa feitura do idioma foi empreendimento galaico, com cívica colaboração de minhotos e trasmontanos, e o fruto disso continuaria depois, séculos a fio, a ser língua do nosso Reino. (Não às boas, ainda assim. O galaico foi língua imposta a beirões, a estremenhos, a alentejanos, a algarvios, portanto a três quartos do território, pelas tropas da ocupação portucalense, na sua gloriosa descida). É isso: pavoneamo-nos com o mais fino de posses comuns. Nunca os galegos, delicados, no-lo lançaram em rosto. Um dia destes temos de dizer-lhes que não foi por mal.
Sendo as coisas assim, poucos se espantarão de que, na «História de Portugal Contada a Uma Criança», de Rómulo de Carvalho, numa magnífica edição da Gulbenkian, a palavra «Galiza» só surja tardiamente, quando se narram as patrióticas tropelias de um rei português por aquelas bandas. Poucos sobrolhos se terão franzido, também, ao ler as recentes entrevistas que João de Melo, conselheiro cultural em Madrid, deu à «Visão» e ao «JL», onde da nossa proximidade galega nem sombra passa.
Tudo bate, pois, certo. Nunca mais, desde a grande ruptura com o resto da Península, em finais do século XIV, os nossos regimes desenvolveram qualquer política galega. Ainda hoje a «questão galega» não entra em nenhum pacote de preocupações. E, contudo, sempre que surge entre nós, ela desperta interesse e mesmo alguma paixão. Verificou-se isso durante a longa conversa internética que, de 1997 a 2001, portugueses e galegos mantiveram no Terràvista (leia-se a «Única» de 7/10/2005) ou durante um aceso debate que, em Abril de 2006, teve lugar no blogue «Renas e Veados». É que o assunto «Galiza» vem mexer com temas que, esses sim, nos fazem correr às barricadas: o centralismo lisboeta, a regionalização, a pronúncia do Norte, os touros de Barrancos, os nascituros de Badajoz. Mas não acorda menos um lado obscuro: o receio dum concorrente além-Minho, os fantasmas da anexação, os sonhos duma ressuscitada Galécia, o grande medo espanhol, o iberismo e seus desenhos peninsulares. É nestas águas, sobretudo nas turvas, que pesca a nossa fantasiosa extrema-direita. Isto para desorientação de alguns galegos que lhe desconhecem o exacto peso.
Entretanto, toda uma teia empresarial, universitária, autárquica e cidadã se tem vindo a tecer entre o nosso Norte e a Galiza, tornando natural o que era singular, correntio o que era impensável. Sem alarde, e sem fantasmas, só contacto humano, mútuo conhecimento e interesses, descontracção, por sobre as pontes do Minho ou na raia seca. Com festa e música, que disso sabem eles. Os «media» portugueses, sobretudo no Norte, prestam, com algum sistema, atenção à Galiza. E vez por outra um periódico traz colaborações galegas, mesmo em ortografia normativa.
Parece, pois, proveitoso deixar descansar a História e seus sobressaltos, ou lembrá-la só para melhor entender aonde chegámos hoje. Um bom começo seria proibir-nos lirismos do tipo «a separação que nunca devia ter-se dado», «unir o que a História dividiu», «reconstruir a Galécia». Tudo lastro, tudo tralha. Baste-nos saber que, se de algum povo somos manos, é desse. Demasiado parecido connosco, ele canta melancólico, chamando-se a si mesmo «uma folha no vento/ alento e desalento», como no soberbo número «O Meu País», do grupo Luar na Lubre, com a voz da portuguesa Sara Vidal. Ou, já bem diferente, seguro, inventivo, achamo-lo ao estirador ou frente ao ecrã, criando uma banda desenhada e uma animação digital que dão cartas a nível peninsular e europeu. É assim que muitos galegos preferem olhar o seu país, como um projecto de futuro, numa periferia que já não é condenação mas oportunidade.
Fazem-no na sua língua, não na do Estado. E aqui há um gesto concreto, amigo, ao nosso alcance: o de falarmos sempre português do outro lado da fronteira norte, o nosso português de sempre, só mais calmo, mais bem articulado, como deveria já ser. Tenha-se, sim, em conta uma secular e interiorizada inferiorização, que pode levar um galego a dirigir-se-nos em espanhol, por... simpatia. Ora, podemos ser nós os simpáticos, poupados que fomos a ter um idioma secundarizado. Falando com ele português, mostramos a um galego que, com a exacta língua da Galiza, se ganha um novo e largo mundo.
«Um português vive num país já feito. Um galego ainda está a fazê-lo.» Isto diz Elias Torres Feijó, da Universidade de Compostela, entrevistado nestas páginas. Sintético, chama a Portugal um «resultado», à Galiza um «processo». «É um trabalho para gerações, eu sei. Mas hoje farei o que só hoje pode ser feito.» Ele não diz, mas muitos galegos pensam-no: Portugal demonstra, a cada dia que passa, que um processo de construção nacional pode acabar bem.
Cf. Um português consegue falar galego? + E a Galiza aqui tão perto