Como o consulente não esclarece os casos que considera de «claro atropelo» e os outros, que avaliza – os que «resultam de uma evolução lógica» da língua, como, supostamente, seria o uso do particípio passado do verbo abusar em construções da voz passiva –, fica a dúvida: que critérios segue para estabelecer essa fronteira? Porque sim? Porque se gosta mais ou menos? Porque é um modismo recorrente nos media e, errado embora do ponto de vista gramatical, de tanto repetido, há que aceitar como correto?
Por essa ordem de argumentação, porque não havemos de aceitar, também, o "foi gostado", o “foi batida” ou o “foi chocado”?...
E porque não dar livre-trânsito a todo o tipo de palavras e construções (mal) usadas na comunicação menos cuidada, como os «dias "soalheiros"», o «"evacuar" pessoas», os "despoletar" crises, as "tragédias" humanitárias, os "à séria", os "intervidos" e os “houveram" todos, ou os "um dos que fez" tão generalizadamente escritos e ditos nos jornais e no audiovisual?...
Obviamente que quem preze a língua e a cultive com esmero optará sempre pela norma, e não pelo seu contrário. Seguindo o que tão assertivamente apontou o Nobel José Saramago, em texto escrito especialmente para o Ciberdúvidas: «Uma língua que não se defende, desaparece.»
Ao fim e ao resto, tudo se resume na síntese feliz de João Carreira Bom: «A língua é como um rio: sem margens, desaparece.» Ou seja: a criatividade e a inventiva dos seus falantes, de um lado, e, do outro, as regras e as normas que a estruturam gramaticalmente e lhe acautelam o abastardamento.