A viciosa utilização do particípio passado do verbo abusar, nesta crónica do autor no semanário luandense Nova Gazeta, de 17/12/2015, à volta dos usos do português em Angola. Uma construção que se tornou recorrente também no Brasil, como observa Luciano Eduardo de Oliveira, em nota acrescentada no final.
Este é daqueles casos em relação aos quais as autoridades não se podem manter impávidas e serenas. Os actos de criminalidade [em Luanda] têm-se revelado verdadeiramente assustadores. Os marginais não querem saber: velhas, crianças, homens... tudo para eles é um alvo a abater.
O caso mais recente foi o que mais revolta me causou. Vários meliantes arrombaram uma casa, vasculharam tudo e mais alguma coisa. Como não encontraram mais dinheiro, amordaçaram o pai, levaram raparigas entre os 17 e os 22 anos e... já podem imaginar o que aconteceu depois. Mas pararam por aí. Pior que tudo isso, havia, na casa, uma jovem senhora que acabara de dar à luz. Tinha dias de parto, mas nem mesmo assim foi poupada. Sem dó nem piedade, os bandidos violaram-na. Eu tinha as mãos ao volante, tremia e quase bati no carro à frente. Estava todo arrepiado. Mal podia imaginar o sofrimento por que aquela jovem mãe estava a passar. Com a agravante de não se saber o estado serológico dos violadores. Ao bebé, que mal começou a respirar num mundo que de melhor lhe teria a dar, já foi amputada a possibilidade de desfrutar do leite da mãe, sob pena de ser infectado.
Acho tudo isso um abuso autêntico. Abusar das meninas, dos pais e, nalguns casos, até de velhinhas. Os abusos têm sido tão repetidos que nem o próprio verbo abusar tem sido poupado. Este espaço provou isso. Dizer que «três irmãs foram abusadas sexualmente» pode ser considerado um acto de violência linguística. Daí as nossas desculpas.
Como explica Sandra Duarte Tavares, o particípio passado do verbo abusar (abusado) por si só não constitui erro. «Corresponde ao particípio passado de um verbo da primeira conjugação – abusar (tal como: estudar – estudado; gostar – gostado; comprar – comprado; maltratar – maltratado).»
A incorrecção ocorre quando a forma abusado é usada com o verbo ser, para formar a voz passiva. Não se pode, por isso, dizer «três irmãs foram abusadas sexualmente». O verbo abusar não admite construções na voz passiva, porque é transitivo indirecto e por ser acompanhado da preposição de (à semelhança dos verbos conversar, que é acompanhado da preposição com, de obedecer pela preposição de, gostar por de, etc.).
Se aceitarmos a frase «três irmãs foram abusadas sexualmente» como correctas, teremos de aceitar também frases como: «Ela é muito gostada pelo namorado», quando a forma correcta deve ser na voz activa: «O namorado gosta muito dela».
Por isso, ao invés de frases com «três irmãs foram abusadas sexualmente», devemos usar «três irmãs foram vítimas de abuso sexual», ou simplesmente «três irmãs foram violadas». Jamais «três irmãs foram abusadas sexualmente». Acabemos com os abusos, venham eles de onde vierem.
N.E. – Tal como em Angola – e em Portugal (vide Textos Relacionados, ao lado) –, também no Brasil essa construção se tornou agora recorrente, segundo o nosso consultor Luciano Eduardo de Oliveira, que observa: «Apesar de fazer parte da língua, julgo que o aumento do uso desse verbo se dá por influência inglesa. Anos atrás parece que ninguém falava assim, nem abusar era o verbo escolhido nesse contexto. Dizia-se que alguém tinha sido estuprado, violentado ou, talvez menos frequentemente, violado. Talvez agora abusem do verbo abusar porque soa menos forte que estuprar ou, então, porque estuprar implica penetração – e já abusar não necessariamente.»
Crónica da autoria de Edno Pimentel e publicada na coluna "Professor Ferrão" do jornal luandense Nova Gazeta, em 10/12/2015. Manteve-se a ortografia conforme a norma ainda aplicada em Angola, anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.