Surgiram ultimamente algumas dúvidas de interpretação do Acordo Ortográfico. Indico a seguir qual a minha posição particular nesses casos especiais. Como acentuo sempre, não pretendo fazer lei com as minhas opiniões, mas transmitir um parecer, que, na dúvida, é para mim mais sensato.
1. Primeiramente, sublinha-se que a Academia Brasileira de Letras (ABL) é taxativa: «A tradição é um dos princípios do acordo de 1990». Nesta base, considero também que a tradição lexicográfica, habitual nos vocabulários oficiais ainda em vigor, nunca pode ser inteiramente esquecida. A história das palavras faz parte do nosso património linguístico.
Lembra-se que o projecto de 1986, que pretendia unificar a língua (unificava 99,5% do vocabulário geral), foi recusado por ser excessivamente inovador (ex.: acabava com os acentos nas esdrúxulas e, logo, acabavam as diferenças entre o PE e o PB em palavras como António/Antônio, efémero/efêmero, etc. [em Portugal, nessa altura assustou muito a utilização da palavra cágado sem acento…, mas havia problemas de possível retorno da grafia sobre a fonia, como na palavra *"bemaventurado"]).
Então, os linguistas dos dois países (nunca desistindo louvavelmente de conseguirem um dicionário único para a língua portuguesa, como têm outras línguas importantes) adoptaram para o acordo de 1990 uma política mais conservadora («uma versão menos forte»), para assim garantirem que uma grafia única tivesse maior possibilidade de ser aprovada.
Neste espírito de se conservar a tradição, quando não há indicações de mudança taxativa no texto do novo AO, a tendência é manter-se a grafia anterior. Acrescento: quando há dúvida e enquanto não houver um Vocabulário Comum oficial…
2. Co-herdeiro e coerdeiro
Não faz qualquer sentido mudar co-herdeiro para coerdeiro. A desculpa é a obs. de b) da Base XVI, que manda aglutinar co- sempre. Para não se contrariar a alínea a) da mesma Base, que obriga ao hífen, por herdeiro ter h, tende-se a aplicar o 2.º da Base II, suprimindo o h. Esta inovação contraria o ponto 1 desta nota. Aliás, na citada alínea a) da Base XVI está taxativamente escrito no texto do novo AO: co-herdeiro. Uma grafia coerdeiro não só violenta o ponto 1, como violenta o próprio texto do acordo. Ora este não pode ser alterado sem um novo acordo de todos os signatários. Se os brasileiros querem adoptar coerdeiro façam-no como dupla grafia. Não vejo que Portugal possa ser obrigado a esta inovação. Note-se que se existe coabitar, a perda do h já estratificou nesta palavra há muito tempo (ex.: Rebelo Gonçalves [RG], 1967). As palavras co-herdeiro e co-herdar aparecem com hífen em todas as publicações portuguesas sobre o novo AO, que conheço.
3. Prefixos re-, pre-, pro-
A dúvida derivou da aplicação de b) da Base XVI, que manda separar por hífen o prefixo que termina na mesma vogal em que o segundo elemento começa. Neste caso, no meu ponto de vista, respeita-se o ponto 1 desta nota. Consta que Evanildo Bechara, da ABL (um linguista que muito admiro pelas impressões que trocámos há tempos) é taxativo neste ponto: «Se o Acordo quisesse contrariar a tradição, tê-lo-ia indicado». Para o Brasil, tenho informações de que a ABL adoptará: reeleição reeditar. No mesmo espírito, portanto, será: reedição, reeducação, reentrar, reenviar, reexpedir, etc., como até aqui, de longa data (RG). Da mesma maneira, penso que deverão ser: preeminente, preencher, preexistir, etc. como até aqui, de longa data (RG).
Note-se que com o prefixo re- estão a aparecer e são defendidas grafias para o novo AO com hífen quando o segundo elemento começa com e. Não foi esse o critério do Dicionário da Porto Editora, com que eu concordo. Se Portugal adoptar a grafia com hífen, não terei outro remédio senão seguir a variante brasileira, depois legítima no universo da língua.
Quanto ao prefixo pre-, não encontrei propostas com hífen para o prefixo átono seguido de e. Este facto torna ainda mais incoerente e insustentável a ideia de re- com hífen.
Convém aqui fazer um reparo. Os prefixos pre-, pro- (e pos), quando separados por hífen são tónicos, com acento gráfico: pré-, pró- (e pós-). Acontece que, com o uso, alguns destes prefixos tendem a ficar fundidos com o elemento seguinte, deixando de ser tónicos (prever, proclamar [pospor]). Em Portugal, normalmente a prosódia do prefixo também muda; no entanto, enquanto essa mudança não entra nos hábitos linguísticos há alguma indefinição. É o caso, por exemplo, de proactivo, já em Houaiss na norma actual (nalguns dicionários ainda pró-activo). Então, na fase de transição a pronúncia com vogal aberta tende a fazer-se como se o prefixo ainda fosse tónico. É uma indefinição que poderá levantar problemas na aplicação desta Base.
Mas há mais problemas nesta Base. A alínea b) do 2.º traz o risco também de retorno da grafia sobre a fonia. Por exemplo, a palavra intraocular no novo AO, pode ser eventualmente pronunciada ¦tràu¦ e não ¦trà-ò¦.
4. Abrupto e ab-rupto
A dúvida reside talvez no que se lê na Base XX, que manda considerar ab-, ad-, como todos indivisíveis. Lembra-se, porém, que abrupto está estabilizada no português europeu desde longa data (RG). Se os brasileiros preferem ab-rupto, com hífen, terá de haver dupla grafia. Note-se que uma grafia adoptada em Portugal igual a esta brasileira poderia implicar mudança de prosódia habitual do r no nosso país nesta palavra (de alveolar, como em caro, para velar, como em carro).
5. Ab-rogar, ad-renal, ob-reptício
As palavras com estes prefixos, quando o segundo elemento começa com r, também estão assim estabilizadas na língua há muito tempo (RG). Não há nada no novo AO que permita mudá-las. Vigora o ponto 1 desta nota. Aliás, fundir os elementos poderia implicar mudança de prosódia do r, agora ao contrário (de velar para alveolar); e é esse o motivo que justifica o hífen.
6. Destróier (dúvida que surgiu no Brasil)
A dúvida reside no 3.º da Base IX, que manda eliminar o acento nas paroxítonas com tónica oi. Prevalece, porém, a regra do 2.º a) da mesma Base, que exige o acento por a palavra terminar em r. E domina como sempre o critério do ponto 1 desta nota.
7. A obs. do 1.º da Base XV, que manda aglutinar quando se perdeu a noção de que se trata duma palavra composta (ex. no novo AO: mandachuva, paraquedas [tem sido manda-chuva, pára-quedas ]) pode dar origem a confusões. Esta regra aplicar-se-á quando? Ao arbítrio dos lexicógrafos? Estou a lembrar-me de possíveis controvérsias em: botafora, cabracega, ferrovelho, gatopingado, rodaviva, cortamato, etc. Poderão diferir os VOLP PB e PE na grafia destas palavras? Qual o critério?
Em resumo, a verdade é que o texto do novo AO não prevê todas as situações duvidosas; e é preciso aplicá-lo com bom senso, enquanto não há documentos que estabeleçam as grafias oficiais. Quando se é muito apressado, aparecem disparates.
A própria ABL publicou ultimamente um dicionário escolar sem ainda estar publicado o VOLP brasileiro oficial e concluiu já que saiu com erros (re-estar, re-entrar). Informaram-me gentilmente que há uma segunda versão corrigida do dicionário, mas que é necessário ver a página interior, onde se indica 2.ª edição, pois a capa é igual.
No caso de Portugal, o assunto é ainda mais grave. Os apressados, mesmo sem data fixada para a entrada em vigor, estão a inventar palavras sem a certeza de vigorarem num VOLP português. Por outro lado, quando for publicado o VOLP brasileiro, poderão copiar as suas soluções para Portugal. Ora já vimos que algumas não servem.
Agora o nosso interessado ministro da Cultura (que tive a honra de conhecer pessoalmente) diz que espera ter o novo AO em vigor neste semestre. É meritória a sua decisão de não ficarmos desprestigiados em relação ao Brasil; mas esse prestígio depende também da estrutura base que o novo AO tiver em Portugal. Existe já, com data marcada, a publicação dum documento para Portugal semelhante ao VOLP brasileiro da ABL que sairá em breve? Uma versão mais antiga da ABL em meu poder tem 350 000 entradas simples; ora informaram-me que o VOLP BE para o novo AO será igualmente completo, mas que, além da ortografia dos vocábulos, terá agora prosódia, ortoépia, classes gramaticais, formas irregulares, plurais de nomes compostos, homónimos, parónimos….).
Vê-se, pelo que foi dito acima, que o assunto em Portugal não pode ser tratado de ânimo leve. Os brasileiros outrora basearam o seu Vocabulário no da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) de 1940, de saudosa presença respeitada na língua. Vamos nós agora basear o nosso Vocabulário no da ABL, ignorando a especificidade do PE? Ou deixamos tudo ao sabor das improvisações dos lexicógrafos? A propósito, sublinha-se que um corrector de texto não representa um elemento de referência oficial, e que os prestimosos obreiros destes correctores também precisam de referências correctas para não induzirem em erro.
Se está em elaboração um VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) actualizado, para o português europeu, quem o está a estudar? Quando será publicado? Há garantias de merecer aprovação pela generalidade da comunidade linguística portuguesa? Lembra-se que o anterior trabalho da nossa ACL (e só com 70 000 entradas) não teve essa aceitação generalizada, e que agora convém ouvir as entidades do país especializadas e competentes em lexicologia, o que não se pode improvisar em pouco tempo.
No Vocabulário Comum para a Lusofonia, que vai ser depois elaborado para orientar o Dicionário Comum da Lusofonia (um dos objectivos que justificam o acordo), qual vai ser o papel de Portugal se o nosso castelo estiver edificado na areia?
Por enquanto, os erros em Portugal podem ser atribuídos aos apressados, que deviam esperar que o novo AO entrasse em vigor. Depois de ele entrar em vigor, a barafunda será indesculpável.
Estamos todos, já quase de cabeça perdida, a pedir insistentemente para o país um projecto prestigiante de longo prazo, que nos livre deste navegar à vista do défice e do apertar do cinto, dando-nos esperança para o futuro dos nossos filhos.
Ora bem, incluo o idioma neste planeamento de longo prazo, de maneira a não me sentir diminuído com o amor que têm pela minha e nossa língua os meus estimados irmãos brasileiros.