Em texto originalmente publicado em página pessoal, D´Silvas Filho explica por que razão não concorda com alguns dos critérios seguidos pelos vocabulários ortográficos atualmente disponíveis em Portugal (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e Vocabulário Ortográfico do Português, do Instituto de Linguística Teórica e Computacional – ILTEC), na aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO).
1. Hífenes
1.1. A Base XV, 2.º, do Projeto de 1986, indicava que se deviam grafar sem hífen os compostos “reais ou aparentes” ligados por preposição ou artigo. E lá vinham os exemplos: *água de colónia, *cor de rosa, *Entre os Rios, *Trás os Montes, etc. (além de *mais que perfeito, *ao deus dará, etc.). Ora este projeto foi recusado. Todas estes compostos acima indicados aparecem com hífen no Acordo de 1990.
1.2. Em nenhum ponto do Acordo de 1990 se diz a mesma coisa, nem, pelos vistos, se podia dizer, porque o critério de 1986 não foi seguido, como se vê acima.
1.3. O que se diz na XV, 6.º, é que as locuções não têm em geral hífen, não trazendo novidade nenhuma em relação ao prescrito na norma de 1945, para a qual sempre foi, por exemplo, «à vontade» locução e à-vontade nome (diferença em Rebelo Gonçalves).
1.4. A ideia de extrapolar para 1990 parte da regra de 1986 (e agora só a referente às uniões por preposição...) baseia-se no pressuposto de que os exemplos indicados no citado 6.º com preposição e hífenes são só esses. Mas isso não se pode inferir exatamente assim. Quando se diz «salvo algumas exceções consagradas pelo uso (“como” .....)» nada impede que haja outros casos não mencionados. Se fossem só esses, a redação teria sido outra (exemplo: «salvo “só” as seguintes exceções consagradas pelo uso: ...»).
1.5. O 6.2 das Notas Explicativas diz taxativamente que no hífen se mantém o que foi estatuído em 1945, o que bem se observa nos exemplos apontados em 1.1 deste texto, pois continuaram a escrever-se em 1990 como em 1945.
1.6. Como não me tenho cansado de sublinhar, todos os compostos substantivos ou adjetivos, mencionados em a) e b) do 6.º da Base XV de 1990, não têm hífen porque as palavras estão no sentido denotativo, real; daí fim de semana ter agora também perdido os hífenes, enquanto os outros em a) e b) nunca o tiveram (Rebelo Gonçalves). Assim, estes compostos não servem de exemplo geral para retirar sempre os hífenes em todos os compostos ligados por preposição, como já se tem pretendido.
1.7. Sublinho, também, que os compostos no texto inicial do 6.º estão todos no sentido aparente; daí tradicionalmente a necessidade do hífen. *Água de colónia (VOLP inicial da Porto Editora), sem os hífenes, passa a dar ao composto o sentido real e contraria a regra da maiúscula na inicial do topónimo, pois colónia deixa de ser um referente indireto sem o hífen. *Pé de meia (ILTEC), sem os hífenes, põe o composto no seu sentido real. Ora ninguém deu à Editora nem ao ILTEC o direito de subverter o que vem escrito no texto do AO de 1990, onde se prescreve água-de-colónia e pé-de-meia, taxativamente com hífenes.
1.8. Finalmente, o pretexto de que sacrificar a virtualidade da língua na distinção entre sentido real e aparente nas ligações por preposição (e estranhamente só neste caso...) deriva da necessidade da diferença com os compostos ligados por preposição referentes a espécies botânicas e zoológicas (nos quais o hífen é sempre obrigatório) cai por base nos casos registados no próprio texto do AO, para os exemplos sem preposição, nos quais essa diferença não é exigida: ano-luz, primeiro-ministro, segunda-feira, a par com couve-flor, erva-doce, formiga-branca.
Resumindo:
Considero abusivo que os Vocabulários para o novo AO, feitos por alguns dos obreiros do projeto de 1986, tenham extrapolado para 1990 uma regra que, no texto, não está prescrita no Acordo de 1990 como estava no projeto recusado.
Se a regra em apreço estivesse no AO ou caso venha a estar escrita numa revisão do AO ou num Vocabulário Comum, a minha posição sobre o hífen neste caso poderia ou poderá ser diferente. Sem esquecer que as desobediências ao novo AO dos Vocabulários já publicados abriram precedências para eu também não respeitar regras que considere prejudiciais para as virtualidades da língua.
Assim, continuarei a aconselhar o uso dos hífenes nos compostos ligados por preposição, nos casos em que o sentido é aparente (figurado, ex.: cavalo-de-batalha [argumento insistente]; tradição, ex.: tinta-da-china, etc.). À semelhança do que continua a fazer-se quando não há preposição (ex.: saco-roto, braço-direito, etc.).
2. Consoantes não articuladas
2.1. As precedências de desrespeito pelo texto do AO, ousadas pelos Vocabulários, também me dão o direito de não respeitar decisões no AO que sejam desagregadoras do objetivo fundamental de se ter uma língua comum. Uma obediência cega ao critério fonético acaba por nos obrigar a aceitar variantes em número excessivo (no extremo uva/*uba), ao passo que a etimologia une a língua.
2.2. Frequentemente tínhamos uma só palavra no universo da língua, e seguir o critério fonético obriga-nos a ter duplas grafias desnecessárias. Acontece, por exemplo, com concepção. De facto, agora é imposta (Editora e ILTEC) a variante de acordo com a fonética: conceção para Portugal. Mas, assim, a língua, pretensamente mais comum, passa a ter duas palavras para as mesmas aceções, quando a existência de concepção em Portugal não trazia qualquer inconveniente...; além de que a grafia conceção é suscetível de fazer confusão fonética com concessão.
2.3. O critério fonético conduz desnecessariamente a ambiguidades que anteriormente não havia no português europeu; como é, por exemplo, o caso de corretor para intermediário e para quem corrige.
2.4. Pode mesmo implicar uma fonia rebarbativa quando a prosódia não é correta, como é o caso de espetador, pronunciada com “e” fechado, quando o sentido pretendido é de “e” aberto, problema que não havia nas grafias espetador (que espeta) e espectador (quem está no espectáculo, ou espetáculo, esta última palavra agora sem ambiguidade). O novo AO admite a incongruência gráfica, como em Egito e egípcio e, portanto, aceita espectador e espetáculo.
2.5. O novo AO tinha por fim eliminar consoantes não articuladas já não existentes no Brasil, mas o critério fonético rigorosamente aplicado ao português europeu faz com que sejam muito numerosos os casos em que Portugal se perde a consoante etimológica, enquanto o Brasil paradoxalmente a conserva. No Anexo III da 6.ª edição do Prontuário da Texto Editora, e em cerca de 1000 entradas do Vocabulário Fundamental para o novo AO, há cerca de 150 variantes brasileiras que conservam a consoante etimológica, enquanto Portugal a perde. Repare-se que, segundo o Dicionário em linha da Porto Editora, a escravização portuguesa ao critério fonético obriga-nos a não aceitar a grafia óptimo, que o VOLP da Academia Brasileira de Letras regista livremente, como variante, mesmo contrariando o texto do AO.
Resumindo:
O texto do novo AO funciona, nos seus exemplos, já como um Vocabulário Comum, e, assim, é legítimo no universo da língua usar qualquer das duplas grafias nele indicadas (aspecto/aspeto, cacto/cato, caracteres/carateres, dicção/dição, sector/setor, concepção/conceção, corrupto/corruto). Extrapolando, pode qualquer utente da língua, num país que a usa como língua oficial, legitimamente usar `também´ qualquer uma das grafias legais no universo da língua. Neste raciocínio, como acima, posso, por exemplo, usar, se entender conveniente, as variantes brasileiras: estupefacção, infecção, objecção, rarefacção, ruptura, tumefacção; conforme recomendação no 4 do Anexo III do Prontuário, 6.ª edição, da Texto. E muitas mais que aparecem no 7, Vocabulário Resumido para o Novo AO, do mesmo Anexo.
Recuso-me mesmo a aceitar grafias como espetador, preferindo só espectador (pelos motivos já apontados); circunspeção, preferindo só a variante brasileira circunspecção (porque em Portugal é circunspecto); intercetar, preferindo só a variante brasileira interceptar; olfação, preferindo só a variante brasileira olfacção, oticidade preferindo só opticidade; retração, preferindo só retracção (porque é retracto); etc.
Na discricionariedade que apresentam os Vocabulários já publicados em Portugal, dou preferência a acta em vez de ata (termo que traz ambiguidades e reduz dignidade ao nome); corrector em vez de corretor, para quem corrige, etc. Estão exemplos vários justificados no 4 e no 7 do Anexo III do Prontuário, 6.ª edição, da Texto. No fundo, é o critério que levou os Vocabulários a adotar óptica para visão e ótico para audição, embora o critério fonético dispensasse a consoante muda (está eletro-ótica no texto do AO).
3. Acentos
A discricionariedade dos Vocabulários também abre precedências para eu adotar variantes que considere indispensáveis num contexto. Por exemplo, quanto à supressão do acento na 3.ª pessoa do singular, do presente do indicativo do verbo parar (pára na norma de 1945), considero que, numa frase do tipo: “é preciso atender que para a lavoura, a chuva é insegura”, há ambiguidade na utilidade ou não da chuva, com a existência ou não na abertura da vogal (note-se que uma vírgula depois de “que” atenuaria a ambiguidade).
4. Conclusão final
Vasco Botelho do Amaral, fundador da Sociedade da Língua Portuguesa, a quem dedico o Prontuário da Texto, escreveu: «Eu não mando na língua, nem ninguém manda». Nestes tempos de ditadura mascarada de democracia, que ao menos haja alguma liberdade de usar a linguagem com bom senso. A norma ortográfica, estabelecida por uns quantos que se julgam iluminados, deve ser seguida para facilitar o entendimento na língua escrita, mas só no limite de não esquecer que as regras ortográficas não passam de convenções e tendo sempre presente a sentença bíblica que não me canso de repetir: «O sábado existe para o homem e não o homem para o sábado».