DÚVIDAS

Voz passiva sintética, de novo

Por favor, gostaria que me respondessem se há, de facto, a voz passiva sintética. Pergunta estranha a minha, mas justifica-se:
Fazem-se ótimos pastéis em Coimbra.
Ótimos pastéis se fazem em Coimbra.
Apenas coloquei o sujeito antes do verbo, como manda a índole natural de nossa língua, e olhem o que aconteceu: os docinhos (sujeito) se fizeram. Chego à conclusão, não apenas com esse exemplo ilustrativo da situação, de que não há voz passiva nenhuma na língua de Camões e de Ruy Barbosa. Penso que a construção com o "se" reflexivo (dito apassivante) é antiga e queria realmente dizer que "os docinhos se fizeram", para deixar oculto o ser humano que os fez, dando-lhes a habilidade de se auto-fazerem. Porém, penso, hoje em dia não há essa intenção, quando uma pessoa prefere utilizar a construção com verbo transitivo direto + pronome "se". A nítida intenção é dizer que alguém desconhecido ou que não se quer revelar faz alguma coisa. Portanto:
Faz-se deliciosos docinhos em Mangualde.
Deliciosos docinhos se faz em Mangualde. (ordem indireta, menos utilizada na nossa língua).
Enfim, gostaria que comentassem este assunto nessa perspectiva crítica, não com base no que os gramáticos escreveram, porque isso o sei eu muito bem, de cor e salteado. Agradeço desde já esse espaço, é assim, discutindo, que os homens se engrandecem e entendem. Um abraço a todos os professores do “site” (ou sítio?)!

Resposta

«Fazem-se ótimos pastéis em Coimbra.»
«Ótimos pastéis se fazem em Coimbra.»
Estas frases, com a grafia do PB ( Português do Brasil), perfeitamente substituíveis por São feitos óptimos pastéis em Coimbra e Óptimos pastéis são feitos em Coimbra, ilustram um tipo de construção passiva disponível em Português – a passiva de se – e partilham a propriedade que é considerada definitória da passiva: a suspensão da atribuição da função semântica de agente à posição de sujeito. No caso da passiva de se, esta propriedade decorre da presença do clítico e não de um processo morfológico derivacional. Exemplos dessas construções na Gramática da Língua Portuguesa de Maria Helena Mira Mateus et aliae:
Compraram-se alguns livros ontem.
Os livros compraram-se ontem.
Citando Fausto Caels & Tiago Freitas (2000):
«Nestas frases, que têm uma interpretação preferencialmente idêntica, o clítico assume um valor impessoal, fazendo parte de um sintagma nominal cujo referente é o argumento externo do verbo, um constituinte da categoria pro [categoria vazia na posição de sujeito]. Ao contrário daquilo que sucede com outros constituintes pro do mesmo tipo, não pode ser facilmente substituído por um pronome expletivo.»
«Faz-se deliciosos docinhos em Mangualde.»
«Deliciosos docinhos se faz em Mangualde.» (ordem indireta (gf. PB), menos utilizada na nossa língua).
Nestas frases, o sujeito é indeterminado e por isso o verbo está na 3.ª pessoa do singular. Quando o verbo não se refere a uma pessoa determinada, ou por se desconhecer quem executa a acção, ou por não haver interesse no seu conhecimento, diz-se que o sujeito é indeterminado. Se a indeterminação do sujeito for indicada pelo pronome "se", o verbo fica na 3.ª pessoa do singular.
Exemplos de frases com o sujeito indeterminado pelo pronome "se” apresentados na Nova Gramática do Português Contemporâneo de Celso Cunha e Lindley Cintra:
«Ainda se vivia num mundo de certezas.» (A. Bessa Luís, OM, 296)
«Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz.» (Machado de Assis, OC, I, 520 P.)
«Veio a hora do chá. Depois cantou-se e tocou-se ainda.» (Machado de Assis, OC, II, 106)
Na opinião de Fausto Caels & Tiago Freitas (2000): «Nestas frases, o clítico pode ter um valor impessoal ou anticausativo – Híbrido – dependendo a sua interpretação do contexto discursivo. Se assumir um valor impessoal, estando co-indexado com o argumento externo do verbo, as frases serão respectivamente parafraseadas como:
«As pessoas fazem deliciosos bolinhos em Mangualde»
Se o clítico apresentar um valor anticausativo, consistindo numa marca nominal, as frases serão respectivamente parafraseadas como:
«Os bolinhos deliciosos são feitos em Mangualde»
Todas estas frases são exemplos de sujeito indeterminado disponível nas Línguas de sujeito nulo, como é o caso do Português.

 

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