É o sujeito poético que fala num texto lírico, que se revela pela escrita e nos revela a sua interioridade e pensamento, pois «a poesia lírica não se enraíza no anseio ou na necessidade de descrever o real empírico, físico e social, circunstante ao eu lírico, nem no desejo de representar sujeitos independentes deste mesmo eu […], enraíza-se, em contrapartida, na revelação e no aprofundamento do eu lírico […]» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1983, p. 583). Neste tipo de texto, tudo gira à roda do eu, dos seus sentimentos, emoções e sensações.
Basta lembrarmo-nos da diversidade da realidade poética da obra de Fernando Pessoa, onde se assume como ortónimo e heterónimos, demarcando a pluralidade de eus (de sujeitos poéticos) de uma só pessoa, de um só poeta. Fernando pessoa, racional como é, teve consciência de que um poema ganha vida própria a partir da altura em que é construído e de que o sujeito que fala em «Dizem que finjo ou que minto» não é o mesmo do de Impressões do Crepúsculo («Pauis a roçarem ânsias na minha alma…», nem do de Liberdade («Ai, que prazer/não cumprir um dever»), nem de «Náusea, vontade de nada», assim como do sujeito exaltado de Ode Triunfal (de Álvaro de Campos), do deslumbrado e feliz dos poemas de Guardador de Rebanhos (de Caeiro) ou do eu disciplinado e estóico de «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio» (de Ricardo Reis).
Já Hegel nos dizia, na sua Estética, que «o que forma o conteúdo da poesia lírica não é o desenvolvimento de uma acção objectiva alargando-se até aos limites do mundo, em toda a sua riqueza, mas o sujeito individual e, por conseguinte, as situações e os objectos particulares, assim como a maneira segundo a qual a alma, com os seus juízos subjectivos, as suas alegrias, as suas admirações, as suas dores e as suas sensações, toma consciência de si própria no seio deste conteúdo» (cf. Janet Wolff, The Social Production of Art, London, Macmillan, 1981, p. 138).
Não nos podemos esquecer de que analisar um texto literário implica penetrar na realidade do domínio do discurso. Porque o texto literário se caracteriza pelo «discurso [escrito] que, por sua vez, se actualiza em processo de comunicação, de um eu que escreve ou fala a um tu que lê ou ouve, de um emissor a um receptor» (Maria Alzira Seixo, «A Leitura e a Escrita», in Émile Benveniste, O Homem na Linguagem, ensaios sobre a instituição do sujeito através da fala e da escrita, Lisboa, Arcádia, 1976, p. 16).
Portanto, estes pronomes eu e tu constituem as «instâncias do discurso, isto é, os actos discretos e únicos através dos quais a língua se actualiza em fala para um locutor» (Émile Benveniste, op. cit., p. 46). A realidade em que se inscrevem e a que se referem estes pronomes pessoais eu (locutor/emissor) e tu (receptor) é unicamente uma «realidade de discurso», que é algo muito singular. «Eu só pode definir-se em termos de "locução", não em termos de objectos, como acontece com o signo nominal. Eu significa "a pessoa que enuncia a actual instância do discurso que contém eu". […] É preciso sublinhar isto: eu: não pode ser identificado senão pela instância do discurso que o contém e apenas por ela. Só é válido na instância em que é produzido. Mas, paralelamente, é também enquanto instância de forma eu que tem de ser tomado; a forma eu não tem existência linguística senão no acto de fala que a profere. Há, pois, neste processo, uma dupla instância conjugada: instância do eu como referente, e instância do discurso que contém eu como referido» (idem, p. 50). A definição pode então ser formulada do seguinte modo: eu «é o indivíduo que enuncia a actual instância de discurso que contém a instância linguística eu» (idem, p. 51).
N.E.: a expressão sujeito poético é, geralmente, usada para o sujeito de 1.ª pessoa, o do texto lírico, aquele que revela a sua interioridade através de um texto poético, onde transparecem os seus sentimentos, emoções, sensações...
Não podemos esquecer-nos de que «o emissor assume imediata e especificamente a responsabilidade de enunciação de um dado texto literário e que se manifesta sob forma e a função de um eu oculta ou implicitamente presente e actuante no enunciado, isto é, no próprio texto literário» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1983, p. 222) nem de que, tal como o texto literário, esse emissor «é uma entidade ficcional, uma construção imaginária» (idem, p. 223). Ora, «essa voz que fala» (idem, p. 223), quer seja num poema ou no texto literário em prosa, é um «”eu” que enuncia» (Émile Benveniste, O Homem na Linguagem, Arcádia, 1978, p. 26) e, porque o «eu se refere ao acto do discurso individual em que é pronunciado, e designa o locutor […], a realidade para a qual remete é a realidade do discurso onde eu designa locutor que se enuncia como “sujeito”». Assim, este eu que se enuncia como sujeito não existe fora do discurso. É o sujeito de enunciação.
Simplificando: a nível literário, a expressão sujeito de enunciação refere-se àquele que enuncia um discurso, uma mensagem, um texto literário, quer seja um “eu” lírico (também designado por sujeito poético), um narrador ou a voz que fala na prosa poética.
Respondendo mais directamente às perguntas, considero que se deve utilizar para a prosa (incluindo a prosa poética) a expressão sujeito de enunciação.