Tornar-se é um verbo predicativo ou copulativo num contexto como «tornou-se cruel». O mesmo se diga acerca de mostrar-se e revelar-se nas frases «ele revelou-se cruel» e «ele mostrou-se cruel», muito embora esta classificação não deixe de levantar alguns problemas de análise. Passemos à fundamentação destas afirmações.
Não podemos considerar equivalentes, nem sintática nem semanticamente, as duas frases que a consulente apresenta — «Ele tornou-se cruel» e a «A vida tornou-o cruel». Comecemos por analisar o segundo exemplo, recorrendo a um teste de substituição:
(1) «A vida tornou o Pedro cruel.»
(2) «A vida tornou-o cruel.»
(3) ? «A vida tornou-o.»
Verificamos que «cruel» é um nome predicativo do complemento direto, obrigatoriamente selecionado pelo verbo, pois, de outro modo, como ocorre em 3, a frase não é aceitável. Por isso, consideramos o verbo tornar um verbo transitivo-predicativo.1
No entanto, no primeiro exemplo que a consulente apresenta — «ele tornou-se cruel» —, não podemos classificar o verbo tornar-se do mesmo modo, uma vez que não podemos considerar o clítico se pronome pessoal objeto direto, visto que não podemos reforçá-lo (o * marca agramaticalidade):
(4) «Ele tornou-se cruel.»
(5) *«Ele tornou-se cruel a si mesmo.»
Deste modo, pode afirmar-se que em 4 não ocorre um pronome reflexo, mas, sim, um pronome inerente, o que permite afirmar que nesse contexto tornar-se é um verbo copulativo.2
Quanto aos verbos revelar e mostrar associados ao pronome se, a aplicação do teste de reforço pronominal não parece tão conclusiva:
(6) ? «Ele mostrou-se/revelou-se a si próprio cruel.»
É curioso observar que, dado mostrar-se e revelar-se poderem ser empregados como transitivos diretos e indiretos, nas aceções de «exibir (alguma coisa a alguém)» e «dar a a conhecer (alguma coisa a alguém»), a expressão «a si próprio» é suscetível de ser interpretada como um complemento indireto: «não se mostrava a ninguém»; «não revelava a sua crueldade a ninguém». Contudo, com um adjetivo («mostrou-se/revelou-se cruel») ou uma expressão nominal («mostrou-se/revelou-se um homem cruel»), parece difícil, intituitivamente, aceitar a boa formação de 6, pelo que é de supor que o pronome se não tenha de facto função sintatica própria e possa também ser classificado como pronome inerente; por consequência, sugerimos que os verbos, quando associados a um constituinte de função predicativa, acabam por se comportar como tornar-se, isto é, passam a ser copulativos como ser ou parecer, e não transitivo-predicativos. Trata-se, de qualquer modo, de uma análise que requereria uma fundamentação que, de momento, não encontramos nem em gramáticas de referência nem em estudos de linguística.
1 Segundo o Dicionário Terminológico (DT), um verbo transitivo-predicativo é um «verbo principal que seleciona um sujeito, um complemento direto e um predicativo do complemento direto». A mesma fonte refere que uma forma de distinguirmos este tipo de verbos dos verbos transitivos diretos é o recurso a um teste de substituição (exemplos retirados do DT):
(i) «O Pedro leu um livro horrível.»
(ii) «O Pedro leu-o.»
(iii) * «O Pedro leu-o horrível.»
Nestes exemplos, observamos que o segmento «livro horrível» constitui globalmente o objeto direto do verbo «leu», não constituindo, desta forma, «horrível» um nome predicativo do complemento direto. O verbo ler não pode, por isso, ser considerado um verbo transitivo-predicativo. No seguinte exemplo (idem):
(iv) «O Pedro considera o livro horrível.»
(v) «O Pedro considera-o horrível.»
(vi) *«O Pedro considera-o.»
O confronto de v e vi permite concluir que «horrível» não faz parte do complemento direto, pelo que considerar é um verbo transitivo-predicativo pelo menos, nesses exemplos, em que o verbo tem o significado de «ter por» (na aceção de «respeitar», o verbo é transitivo direto: «ela não o considera» = «ela não o respeita/não lhe dá importância»). Sobre verbos transitivo-predicativos, ver "Estruturas transitivas predicativas" no blogue Carruagem 23.
2 Gabriela Matos em Maria H. M. Mateus et al. (Gramática da Língua Portuguesa, 2003, p.843), abordando esta classe de clíticos, sustém que: «[se designam] como casos de clítico inerente as formas do pronome reflexo que não estão associadas a qualquer posição argumental ou de adjunto e em que o clítico não pode ser interpretado como uma partícula destransitivadora». Esclareça-se que o pronome se é partícula destransitivadora quando, afirma a mesma autora, tem a função de «destransitivizar o verbo principal a que se associa»; p. ex.:
O barco virou-se.»
«A tempestade virou o barco.»
*«A tempestade virou-se o barco.»