I. A bateria de frases apresentadas pelo consulente joga com vários aspectos que temos de ter em consideração:
– a especificidade do verbo benzer, que, como verbo abundante ou de duplo particípio, possui duas formas de particípio: benzido (forma regular) e a forma reduzida bento (irregular);
– a presença de situações em que particípio e adjectivo se confundem;
– a particularidade dos verbos das frases – estar e ser –, dois verbos copulativos ou predicativos e, também, verbos auxiliares.
Devido à complexidade da presença, na mesma frase, de várias situações apontadas, torna-se imprescindível fazer apelo aos esclarecimentos dos gramáticos/linguistas sobre cada um desses pontos, para, em seguida, se poder analisar a presença ou não de gramaticalidade ou agramaticalidade em cada uma das frases.
Consideremos, em primeiro lugar, a especificidade do verbo benzer, uma vez que tudo, nestas frases, parece girar à roda da utilização da forma regular e irregular dos seus particípios. Importa referir que, tratando-se de um dos verbos abundantes assinalados por Celso Cunha e Lindley Cintra, se encontra abrangido pela particularidade de possuir «duas formas equivalentes» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 2002, p. 441) no particípio. Mas, embora os dois particípios sejam designados como equivalentes (do que poderia inferir que se poderiam utilizar indiscriminadamente), são-nos apontadas normas para o seu emprego: «De regra, a forma regular emprega-se na constituição dos tempos compostos da VOZ ACTIVA, isto é, acompanhada dos auxiliares ter ou haver; a forma irregular usa-se, de preferência, na formação dos tempos da VOZ PASSIVA, ou seja, acompanhada do(s) auxiliar(es) ser» (idem) e também, acrescentaria eu, estar (segundo opinião de outros gramáticos).
Seguindo estes pressupostos, enquanto benzido (o particípio regular) deve ser usado com os verbos auxiliares ter ou haver [na VOZ ACTIVA], o particípio irregular bento deve ser utilizado, preferencialmente, com os auxiliares ser e/ou estar, isto é, como fazendo parte do tempo composto da VOZ PASSIVA.
Perante isto, e atentando nas frases apresentadas, verificamos que somente os dois primeiros grupos de frases se enquadram nestes casos, uma vez que os verbos ser e estar, aí, aparecem como auxiliares do verbo benzer (o verbo principal), isto é, formando um conjunto com o seu particípio, do que resultam as locuções verbais «está benzido» e «está bento» [grupo 1. a) e b),respectivamente] e «foi benzida» e «foi benta» [em 2. a) e b)]. Ora, de acordo com os linguistas citados, as formas correctas seriam as previstas nas alíneas b), em que se emprega a forma irregular do particípio – bento:
1.b) A criança está benta
2.b) A criança foi benta.
No entanto, tendo em conta a etimologia do particípio irregular como forma reduzida, outros linguistas analisam o emprego de tal particípio de outro modo, como é o caso de Pilar Vásquez Cuesta e Maria Albertina Mendes Luz, o que as leva a defenderem o seguinte: «O particípio irregular costuma derivar directamente do latim como cultismo, ainda que algumas vezes se tenha já formado dentro da língua portuguesa por contracção. Esquecida a sua proveniência verbal, a maior parte destes particípios são usados como simples adjectivos (cego, cativo, livre) ou inclusive como substantivos (progresso, reduto).» (Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Ed. 70)
Resta-nos, portanto, verificar a etimologia da forma irregular bento, procurando ver se «deriva directamente do latim como cultismo», o que teria conduzido ao esquecimento «da sua proveniência verbal», levando a que tal forma ganhasse, com o uso, o estatuto privilegiado de adjectivo. E, de facto, esse é o caso de bento, que aparece no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado (1990) classificado como adjectivo (com o valor de «bendito»), cuja etimologia remete para ‘benedictu-‘, o particípio passado de forma erudita do verbo latino ‘benedicere’. Segundo esse dicionarista, o adjectivo bento surge com a forma “beento” em 1279 e, mais tarde, “bento” no séc. XV, tornando-se também antropónimo (particularmente nos nomes de santos e papas) com uso já no séc. XIII, alternando com o divergente “Benedicto”, representante culto do citado latinismo. Perante esta apresentação da evolução da palavra, não podemos negligenciar esta outra perspectiva, sobretudo, porque se fundamenta no uso e no valor que os falantes lhe foram atribuindo.
Assim, se tivermos em conta estes últimos dados, deveremos encarar bento como adjectivo e não como particípio passado do verbo benzer, o que pressupõe que o particípio deste verbo fosse a forma regular – benzido.
Penso que esta perspectiva é a mais veiculada pelos falantes, o que é comprovado por vários dicionários – de que são exemplo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António Morais e Silva (2002), o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2005), o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001), o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora e o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo (1996) – que classificam bento, em primeiro lugar, como adjectivo (significando «abençoado, consagrado, bendito») e, depois, como nome/substantivo, para designar o frade beneditino, e muito poucos o assinalam, em terceiro lugar, como particípio passado de benzer. Ora, como os dicionários representam e são o reflexo da língua, eles dão-nos conta do léxico veiculado e vigente em determinado tempo. Não é por acaso que os dicionários precisam de ser actualizados.
Estamos, assim, perante uma perspectiva linguística que não considera as frases b) dos grupos 1. e 2. como as correctas, porque bento é encarado como adjectivo, o que inviabiliza a sua utilização como particípio passado de benzer. De acordo com este raciocínio, as formas correctas serão as das frases a), mais precisamente:
1. a) A criança está benzida.
2. a) A criança foi benzida.
Quanto às frases do grupo 3, apresentam-nos a partir do verbo uma outra situação: o verbo ser não é um verbo auxiliar que forme um conjunto com o particípio de verbo benzer.
Nas duas frases – «a) É uma criança benzida» e b) É uma criança benta» –, a forma «é» do verbo ser surge como um verbo copulativo ou predicativo que, conjuntamente com o predicador – «uma criança benzida» e «uma criança benta» – forma o predicado da frase que é, por isso, denominado predicado nominal. Sintacticamente, «uma criança benzida» e «uma criança benta» são predicativo do sujeito («A relação gramatical dos predicadores em frases copulativas é a de predicativo do sujeito», in Maria Helena Mira Mateus et alli, Gramática da Língua Portuguesa, 2003, p. 279).
Ora, nestas duas frases benzida e benta devem ser analisadas à luz da função que exercem, isto é, como constituintes do predicativo do sujeito (II), o que implica que nos debrucemos o assunto. Recordando as propriedades do predicativo do sujeito – cujos constituintes podem ser predicadores de natureza adjectival, um nome simples, um SN indefinido ou uma expressão nominal qualitativa – apercebemo-nos de que, em qualquer uma das frases, o predicativo de sujeito é constituído por um SN indefinido [SN indefinido determinante indefinido (uma) + nome (criança) + adjectivo modificador ou qualitativo (benzida? ou benta?)]. Assim, nestes casos, estes particípios terão o valor de adjectivo. E terão de ser analisados como tal. Mas qual dos dois será mais correcto como adjectivo?
Como vimos anteriormente, há casos em que os particípios e os adjectivos se parecem confundir e, por isso, «muitos particípios verbais funcionam sintacticamente como adjectivos, surgindo em posição predicativa ou atributiva e podendo ser modificados por expressões de grau». (Mira Mateus et alii, Gramática de Língua Portuguesa, p. 374). E, se relembrarmos as palavras de Pilar Vásquez Cuesta e Maria Albertina Mendes Luz, que nos explicam a razão pela qual as formas irregulares do particípio ganham estatuto de adjectivos, verificamos que os linguistas Celso Cunha e Lindley Cintra vão mais longe ao afirmarem que «somente as formas irregulares [dos verbos abundantes] se usam como adjectivos e são elas as únicas que se combinam com os verbos estar, ficar, andar, ir e vir)» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 2002, p. 442).
Mais uma vez, chegamos à conclusão de que os linguistas não respondem a todos os casos. Parecem estar todos de acordo de que as formas irregulares do particípio é que são usadas como adjectivos – o que nos aponta, como víramos já, para benta como a forma correcta –, mas Cunha e Cintra condicionam-nas a um número reduzido de verbos (estar, ficar, andar, ir e vir). Ora, nenhum desses verbos está presente nas duas frases do grupo 3!
Tendo em conta (e, apesar de) tudo o que foi dito, considero que não se pode descurar a pluralidade de sentidos/significados que benzido e bento podem ter/sugerir, o que permite que uma e outra sejam legítimas.
Reparemos, então, nas diferentes leituras de uma de outra:
Relativamente à frase a) – «É uma criança benzida» –, pode-se inferir que se está a referir a uma criança «a quem deitaram a bênção», surgindo esse acto a que foi sujeita como marca de distinção perante outra(s), a quem tal não aconteceu;
Esta «criança bendita» da frase a) difere da «criança benta» da frase b), que pode ser vista como uma criança «bendita» ou «abençoada». Enquanto a primeira é fruto do acto de outrem, o que a distingue, a segunda distingue-se pela sua própria natureza (é bendita).
Este tipo de frases é gerador de muitas dúvidas, e facilmente se incorre em erro. Mas não podemos esquecer-nos de que, muitas vezes, o que nos parece errado não o é, porque não se enquadra nas situações de agramaticalidade.
III. Sobre os dias da semana, convém ler as respostas Meses e dias da semana e Nomes dos dias da semana: próprios ou comuns?