A sua questão é muito interessante. Com efeito, a palavra muito pode ser interpretada como intensificadora do advérbio mais e, nesse caso, seria um advérbio, logo, invariável. Teríamos assim, «muito mais bilhetes». No entanto, muito pode, igualmente, ser associado não ao advérbio mais, mas à palavra que se lhe segue. E, nesse caso, a palavra vai comportar-se, prioritariamente, como um quantificador sempre que a palavra que segue o advérbio mais é um nome, e como advérbio sempre que a palavra que ocorre na sequência é um adjectivo, como em (1), um advérbio, como em (2):
(1) Estes exercícios são muito mais difíceis do que os anteriores.
(2) A tua terra fica muito mais longe do que a minha.
A expressão muito mais pode ainda ocorrer na sequência de verbos, como em (3):
(3) Pagámos muito mais do que deveríamos.
Em qualquer dos casos está sempre subjacente uma estrutura comparativa, como acontece igualmente na frase em apreço.
A questão que pode colocar-se, e que se coloca, é a de saber se, com nomes, não pode ocorrer muito como advérbio, ou seja, se a frase em apreço pode ou não ser «tenho muito mais bilhetes». Devo dizer que, enquanto falante de português como língua materna, considero esta segunda frase bem formada, tal como a que a consulente submete ao nosso apreço.
Esta situação coloca-nos perante uma outra questão: como são, afinal, usadas as duas expressões «muito mais» e «muitos/muitas mais»? Na tentativa de chegar à síntese que apresento no início, recorri ao ‘corpus’ CETEMPublico e pesquisei ambas as expressões. A sequência «muitos mais» ocorre 754 vezes. Da sequência «muito mais» a pesquisa permitia-me a análise das primeiras 15 000 ocorrências. Na impossibilidade de analisar a totalidade dos resultados, optei por analisar as primeiras 75 ocorrências de cada expressão. Verifiquei que, sempre que a palavra que segue a expressão muito mais é um nome, a palavra muito se comporta, sobretudo, como um quantificador e nos restantes casos se comporta como advérbio. Nos primeiros 75 exemplos em que ocorre «muito mais» encontrei duas situações em que a expressão continha um nome, comportando-se a palavra muito, claramente, como advérbio, pois não se registam marcas de concordância:
(4) Este veterano do espaço, coronel da Força Aérea dos EUA, que já participou em missões em 1985 e 1989, acrescentou que «há muito mais núvens [sic]1 na atmosfera do que há dois anos». Ext 3028 (nd, 91b)
(5) Aqui há muito mais gente e muitos mais carros do que na Suécia, um clima diferente e uma cultura muito mais antiga. Ext 5492 (nd, 95b)
Estes dois exemplos são insuficientes para poder formular uma hipótese consistente, mas talvez muito possa ter aqui duas interpretações: poderá ligar-se directamente a mais ou, pelo facto de se tratar de nomes não contáveis, poderá ligar-se ao nome, mas sem concordância.
A segunda questão que coloca não apresenta qualquer problema de gramaticalidade. Registo, porém, dois aspectos. Um prende-se com a flexão em grau da palavra muito, que ocorre quer ela seja quantificador, quer seja advérbio, origem deste tipo de flexão. O outro relaciona-se com a classificação morfossintáctica de muitíssimos no exemplo que apresenta e que repito: «tenho muitíssimos». A TLEBS não prevê a ocorrência dos quantificadores em posição de pronome, ou seja, sem antecederem, explicitamente, o nome. Ora, se não tivermos em conta essa possibilidade, o que fazer com muitíssimos? Não é quantificador puro, pois não ocorre à esquerda de um nome. Não é advérbio, pois tem marcas de plural. A única hipótese é, a meu ver, considerar que se trata, efectivamente, de uma situação em que, tal como os determinantes possessivos e os demonstrativos, e tal como os quantificadores relativos, quantificadores como muito podem ocorrer em posição de pronome.
1Deveria ter-se escrito nuvens.