Existem verbos, os chamados verbos abundantes, que têm dois particípios: um regular e um irregular. Por exemplo, o verbo entregar tem como particípio regular entregado, e como particípio irregular, entregue.
Sobre o uso destes particípios, a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra, diz na página 441: «De regra, a forma regular emprega-se na constituição dos tempos da VOZ ACTIVA, isto é, acompanhada dos auxiliares ter ou haver; a irregular usa-se, de preferência, na formação dos tempos da VOZ PASSIVA, ou seja, acompanhada do auxiliar ser.»
Esta gramática chama também a atenção para o facto de actualmente apenas se usarem os particípios irregulares dos verbos ganhar, gastar e pagar tanto nas formas com o auxiliar ser como nas formas com ter.
Seguindo esta regra, seria de esperar que, tendo de se usar o verbo matar, para construir um tempo da voz activa com o verbo ter, e sendo o verbo matar um verbo com dois particípios (o regular matado e o irregular morto), fosse usada a forma matado: «Tenho matado muitas moscas.»
No entanto, neste caso, o que está prescrito nas gramáticas nem sempre tem correspondência no uso dos falantes. Num artigo sobre este assunto [Algumas Áreas Problemáticas para a Normalização Linguística – Disparidades entre o Uso e os Instrumentos de Normalização Linguística, Actas do XX Encontro da Portuguesa de Linguística (Lisboa, 13-15 de Outubro de 2004), Lisboa: APL, pp. 109-125], o linguista Telmo Móia procurou no corpus CETEMPúblico as ocorrências das formas regulares e irregulares de alguns verbos abundantes frequ[ü]entes usados com o verbo ter. Verificou que há verbos cujo particípio irregular é mais usado do que o regular, contrariando, desta forma, a regra definida pelas gramáticas. Um desses verbos é precisamente o verbo matar, que o autor classificou como um dos «verbos cujo particípio regular mostra indícios de cair em desuso, mas ainda ocorre com alguma frequência». No referido corpus, o particípio morto usado com o verbo ter apareceu 819 vezes (89% das ocorrências), ao passo que o particípio matado apareceu apenas 102 (11% das ocorrências). Dentro do mesmo grupo, o autor inclui verbos como entregar, salvar, eleger, aceitar e expulsar.
Outros verbos houve (ganhar, gastar, pagar e limpar) que o autor classificou como «verbos cujo particípio regular caiu claramente em desuso», uma vez que o particípio regular praticamente não apareceu no corpus.
Por força do uso que os falantes fazem da língua, a tendência é para que as gramáticas e outros instrumentos de normalização da língua venham a admitir o uso de particípios irregulares destes verbos em contextos em que até agora admitem apenas as formas regulares, tal como aconteceu com os verbos ganhar, gastar e pagar. No entanto, neste momento a visão normativa é a de que «Tenho matado muitas moscas» é a forma que deve ser usada.
Se me for permitida uma opinião pessoal, direi que não deve assinalar erro na frase «Tenho morto muitas moscas». Antes, poderá alertar os alunos para a existência de um outro particípio, que devem usar neste contexto, uma vez que é uma forma vista como mais correcta; não sem lhes explicar que a língua é um ser vivo em constante mutação, sendo esta uma das áreas actualmente em mudança.