DÚVIDAS

O uso dos pronomes me, lhe e te

Tenho visto várias respostas a consulentes em que se afirma que o uso de ele como objeto indireto precedido de preposição é "agramatical" ou francamente "errado".

Sei que em Portugal o "uso" indica as formas sintéticas lhe, te, me em vez das analíticas «a ele/ela», «a mim», «a ti/você», mais comuns no Brasil. A minha primeira dúvida é: desconsiderando-se o "hábito" e atendo-se estritamente aos aspectos lógicos/formais da gramática, o que seria errado no uso das formas analíticas em detrimento das sintéticas?

Além dos casos óbvios, e dada a impossibilidade "técnica" de se enfatizar um pronome átono, como se resolveria em Portugal a ênfase em uma frase como «Disse a mim, não a ele», com a redundância «convidou-me a mim»? E a segunda parte, «não a ele», como ficaria?

A segunda dúvida é: nos exemplos da resposta à pergunta 13 634, diz-se que a frase «E eu lhe darei toda a eternidade» seria correta tanto em PE como em PB, porque «pode ser considerada enfática, pelo uso do pronome pessoal sujeito». Se o pronome pessoal sujeito pode, portanto, ser considerado como atrator de próclise, o que estaria "errado", mais uma vez do ponto de vista estritamente lógico/formal (no sentido de "contrário às regras gramaticais formais", não no de "contrário ao uso em Portugal"), na próclise empregada comummente no Brasil em construções como «Ele me disse» ou «Eu te disse que isso estava errado» ou ainda «Ela me odeia»?

Resposta

1. A não aceitação das formas «analíticas» em lugar das «sintéticas» (para usar a terminologia do consulente) é uma questão que releva da tradição normativa. Do ponto de vista linguístico (que não se limita à dimensão lógico/formal), as descrições disponíveis revelam que, tanto em português do Brasil como em português europeu, nada impede a ocorrência das formas oblíquas preposicionadas (ou «analíticas») em lugar dos clíticos (ou «formas sintéticas»).

Sobre o problema que levanta em relação ao comportamento dos pronomes com a função de complemento, o que se preceitua em relação ao uso europeu é que, numa frase como a apresentada, o clítico é reforçado pela forma oblíqua uma vez («convidou-me a mim») e, depois, na oração coordenada com elipse, o clítico é omitido juntamente com o verbo ficando apenas a forma oblíqua: «convidou-me a mim, e não a ele» = «convidou-me a mim, e não o convidou a ele».

2. Quanto à segunda pergunta, a verdade é que a ocorrência de pronomes sujeito pode marcar diferentes estruturas, nas duas variedades, relacionando-se não só com a estrutura frásica mas também com a estrutura informacional. Isto significa que há que distinguir entre pronome que marca o sujeito frásico («Eu dar-lhe-ei toda a atenção», em português europeu e também possível em português brasileiro; «eu lhe darei toda a atenção», só em português brasileiro) e tópico frásico («Eu lhe darei toda a atenção» = «quanto a mim, dar-lhe-ei/lhe darei toda a atenção»).

Em relação ao português do Brasil, verifica-se que o clítico tende a ocorrer à esquerda do verbo, ao que parece, independentemente da presença de um pronome sujeito, mesmo em início de frase, como acontece no imperativo («me dá esse livro»; cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 317), apesar de a tradição normativa brasileira reprovar este uso (Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 588).

No português europeu, a próclise do pronome complemento em coocorrência com um sujeito expresso é também possível, mas em condições diferentes, conforme descreve Ana Maria Martins, num artigo intitulado "Clíticos na história do português à luz do teatro vicentino" (Estudios lingüística galega 3, 2011, págs. 83-109; exemplos retirados da fonte consultada; os sublinhados são meus):

a) quando um constituinte pré-verbal é focalizado, sendo a estrutura resultante parafraseável por uma construção clivada: «Para quem o julgava morto, eis que se mostra vivo (...) A estratégia é assumida. Ele o disse, quinta-feira, na breve declaração à imprensa que fez em directo da sua residência oficial.» (= «foi ele (próprio) que o disse»);

b) quando «uma asserção afirmativa é enfatizada, ganhando o enunciador visibilidade como garante da fidedignidade ou indubitabilidade da asserção produzida, eventualmente contra a expectativa ou as convicções do ouvinte» (Martins, op. cit. pág. 91): «Isto que digo, Miguel Torga o disse, a seu modo, antes de mim» (António Lobo Antunes, Visão, 20/09/2007).

Em suma, do ponto de vista da descrição linguística, a próclise do pronome átono que é característica do português do Brasil não se afigura decorrente da eventual ocorrência de palavras que atuem como atratores. No português europeu, o sujeito, realizado nominal ou pronominalmente, pode atrair a próclise de um pronome átono, mas só enquanto focalização ou ênfase, o que remete não apenas para a sintaxe mas também para a estrutura informacional de frases e enunciados.

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