O termo mellitor não se encontra em nenhuma das obras dos vários autores clássicos que versaram sobre apicultura. São, aliás, muito escassos os trechos destes autores em que figura uma designação concreta para o tratador de abelhas. Conheço apenas dois exemplos:
O primeiro vem da pena de Marco Terêncio Varrão (116 a.C.–27 a.C.), que, no seu tratado Rerum rusticarum («A agricultura»), recorreu ao vocábulo mellarius escrevendo o seguinte (III, 16, 17):
Ad extremam, qua mellarii favum eximere possint, opercula imponunt («Colocam tampas na parte posterior, para os apicultores poderem retirar o favo»).
O segundo é da autoria do naturalista romano Plínio, o Velho (23–79), o qual, na sua monumental obra Naturalis Historia, lançou mão do termo apiarius da seguinte forma (XXI, 56):
Proventum enim sperant apiarii large florescente eo [thymo] («Os apicultores esperam, pois, obter farta colheita quando o tomilho floresce em abundância»).
Alguns dicionários referem igualmente o vocábulo mellifex («o que faz mel») traduzindo-o por «apicultor», com base numa única ocorrência na obra De re rustica («A agricultura»), da autoria de Columela (4–c. 70), onde se lê Ubicumque saltus sunt idonei mellifici (IX, 9, 8), um trecho cujo último termo (mellifici) poderia eventualmente ser interpretado como dativo singular de mellifex. A verdade é que, atendendo ao contexto, não faz muito sentido atribuir tal significado a mellifici, apesar de, como é sabido, o adjetivo idoneus pedir dativo. Numa versão inglesa anónima já antiga, do século XVIII1, bem como numa versão mais recente, também inglesa2, os tradutores interpretam mellifici como sendo o nominativo plural do adjetivo mellificus («melífero»), em concordância com o substantivo saltus («bosques») e em aposição a idonei, de que resulta a tradução «Onde quer que os bosques se mostrem aptos, melíferos». Trata-se de uma interpretação mais curial, embora talvez não fosse de descurar a hipótese de haver erro nos códices, nos quais mellifici estaria em vez de mellificio, dativo singular de mellificium («produção de mel»), caso em que idonei mellificio se traduziria por «aptos para a produção de mel».
Resumindo, em termos de autores clássicos, ficamos reduzidos ao par de vocábulos mellarius e apiarius, dos quais apenas o segundo parece ter tido vida próspera. Seja como for, não deixa de ser curiosa a escassez de referências à designação do tratador de abelhas. Virgílio (70 a.C.–19 a.C.), por exemplo, dedicou o quarto livro das Geórgicas integralmente à apicultura, mas não se encontra no seu texto nenhuma referência a este respeito. No único passo em que o poeta fala do apicultor na terceira pessoa, em vez de se lhe dirigir na segunda pessoa, resolve omitir o sujeito, quando diz (IV, 231) que Bis gravidos cogunt foetus («Duas vezes colhem a farta produção»). Na edição ad usum Delphini da autoria de Charles de La Rue (1643–1725), mais conhecido por Carolus Ruæus, o famoso jesuíta francês recorre precisamente ao termo apiarius para verter em prosa o referido verso de Virgílio: Apiarii bis colligunt favos plenos («Os apicultores recolhem duas vezes os favos cheios»)3. É também a apiarius que lança mão Jerónimo Cardoso (c. 1508–c. 1569), humanista, gramático, poeta e lexicógrafo natural de Lamego, no seu Dictionarium ex Lusitanico in Latinum sermonem («Dicionário Português-Latim»), dado à estampa em Lisboa em 1562, para, na segunda página da folha 32, traduzir “colmieiro” (assim se grafava então colmeeiro), termo que na altura se utilizava para designar o apicultor. Por último, no Lexicon Recentis Latinitatis, publicado pelo Vaticano em 2003, o termo italiano apicoltore (p. 49) é traduzido igualmente por apiarius, com referência ao trecho de Plinius citado neste artigo, e apicoltura é vertida por apium cultura, mellificium e ars apiaria.
Quanto a mellitor, a primeira referência que encontrei, imagine‑se, vem do punho do rei D. Afonso Henriques (c. 1109–1185), ou de quem terá escrito por ele. Trata-se de um foral que, In nomine Dei («Em nome de Deus»), o fundador do Reino de Portugal, sub era M.C.LXXX («no ano de 1180»), dirigiu hominibus habitatoribus de Leirena («aos moradores de Leiria»). O texto foi publicado em 1632, como «Escritura XVIII» e sob o título «Que he o foral que elRey Dom Afonso Henriquez deu aos moradores de Leiria», nas páginas 286 e 287 da Terceira parte da Monarchia Lusitana, da autoria de Frei António Brandão (1584–1637), historiador e monge da Ordem de Cister.
Este documento, redigido num latim com certo travo vernáculo, contém preceitos que não deixam de ter o seu interesse para a compreensão do espírito da época, como o seguinte:
Quidquid homo de Leirena in terra Sarracenorum lucratus fuerit, det quintam partem Regi («De todo o lucro que um morador de Leiria obtiver em terra de sarracenos, entregue a quinta parte ao Rei»).
O foral, aliás, é bem explícito nos deveres que incumbem aos diversos artífices, e é aí que entra o vocábulo em questão
Mellitor det per annum unum almude de melle, et unam libram de cera («O apicultor entregue por ano um almude de mel e uma libra de cera»).
Curiosa é também a fórmula com que termina o foral:
Et hoc statutum semper habeat firmitatem perpetuam, Amen, Amen, Amen, etc. («E que este regulamento tenha sempre validade perpétua, Ámen, Ámen, Ámen, etc.»).
Respondendo então diretamente à primeira pergunta do consulente, mellitor significava, pois, «apicultor» no latim medieval que se usava nos documentos escritos no tempo de D. Afonso Henriques. Aliás, no Glossarium mediæ et infimæ latinitatis, da autoria do filólogo francês Charles du Fresne (1610–1688), mais conhecido por Du Cange, este vocábulo está abonado no quinto volume, na página 332, onde se lê mellitor: qui mel vel ceram conficit («mellitor: o que produz mel ou cera»). O lexicógrafo, porém, cita apenas o referido trecho da Monarchia Lusitana, pelo que ficamos sem saber se o termo era de uso geral na época.
Passados alguns séculos, voltamos a encontrar o nosso vocábulo, desta feita integrado no nome científico Bracon mellitor, atribuído a uma vespa parasitoide que, nos Estados Unidos, se alimenta das larvas de várias espécies de lepidópteros e de muitas espécies de coleópteros da família Curculionidae (os chamados «gorgulhos»), sobretudo do bicudo-do-algodoeiro (Anthonomus grandis), e cuja imagem pode ser apreciada aqui.
O nome Bracon mellitor foi cunhado em 1836 por Thomas Say (1787–1843), famoso naturalista, entomologista, malacologista, herpetologista e carcinologista norte-americano, que descreveu mais de 1000 novas espécies de coleópteros e mais de 400 insetos de outras ordens. Por que motivo terá Say recorrido a este termo para designar um inseto que não fabrica mel?
Os taxonomistas não costumam justificar as suas opções de nomenclatura, mas, neste caso, talvez tenhamos uma pista, pois as obras completas de Say, felizmente, foram publicadas a título póstumo por John Lawrence LeConte (1825–1883), considerado o mais importante entomologista norte-americano do século XIX, e o caso não é para menos, pois LeConte terá nomeado e descrito metade dos insetos conhecidos dos Estados Unidos, incluindo 5000 espécies de coleópteros. Ora, em 1859, em Nova Iorque, LeConte deu à estampa, em dois volumes, The Complete Writings of Thomas Say on the Entomology of North America («Obras completas de Thomas Say sobre a entomologia norte-americana»). Folheando o segundo volume, encontramos, na página 708, a descrição desta vespa, que começa assim: Body honey-yellow («Corpo amarelo de mel»). Ao que tudo indica, terá sido a cor a motivar a designação, o que não deixa de ser estranho, pois o vocábulo em questão nada tem que ver com a coloração do mel. Say deveria ter optado por mellicolor, mas enfim...
Por último, refira-se a Mellitor Ltd., uma empresa israelita responsável pelo desenvolvimento de um sensor de glicose, concebido para ser implantado, como se fosse um pacemaker, em pacientes diabéticos, de forma a medir em tempo real, e com extrema precisão, o nível de glicose no fluido intersticial. Mais uma vez, a relação com o mel é apenas vaga e indireta: desta feita, não é a cor, mas o açúcar...
Podemos, pois, dizer que o vocábulo mellitor “anda por aí” desde os tempos de D. Afonso Henriques e que dá para quase tudo...
No que diz respeito à segunda pergunta do nosso consulente, devo dizer que não tenho conhecimento de nenhum glossário latino que verse especificamente sobre a atividade apícola. Poderá, no entanto, consultar-se com algum proveito a tradução do quarto livro das Geórgicas, da autoria de Nicolau Firmino (1907–2001):
Públio Virgílio Marão: As abelhas. Versão da 4.ª Geórgica por Nicolau Firmino. Edição bilingue. Com prefácio de Vasco Correia Paixão. Lisboa: Livraria Académica de D. Felipa; Rio de Janeiro: H. Antunes, Lda. 1966. 136 p.
Esta obra tem a vantagem de ter sido composta por alguém que, além de ser um insigne latinista e um tradutor experiente, também entendia e praticava a apicultura, ofício que herdara de seu pai. O texto é bilingue, com a tradução justaposta ao original, em páginas paralelas, e está profusamente anotado. Atente‑se, porém, que a linguagem de Virgílio, como seria de esperar, se reveste de acentuado cunho poético, pelo que é natural que nem sempre os vocábulos empregados coincidam com os que estavam em voga entre os apicultores romanos. Por exemplo, ao referir-se à cresta, o poeta fala em messis (“colheita”), que talvez fosse o termo empregado tecnicamente, mas é pouco provável que os apicultores chamassem foetus aos favos, como canta o mantuano...
1 L. Junius Moderatus Columella: Of Husbandry, in Twelve Books: and his book, concerning Trees. Translated into English, with illustrations from Pliny, Cato, Varro, Palladius and other ancient and modern authors. London: A. Millar. M.DCC.XLV. xiv, 600 p; p. 395.
2 Lucius Junius Moderatus Columella: On agriculture. With a recension of the text and an English translation by E(dward) S. Forster and Edward H. Heffner. II. Res Rustica V-IX. London: William Heinemann Ltd. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press. XCMLIV. xii, 503, 7 p; p. 453.
3 P. Virgilii Maronis opera interpretatione et notis illustravit Carolus Ruæus, jussu Christianissimi Regis ad usum Serenisssimi Delphini. Editio novissima accurate recognita. Studio et opera J.-I. Roquete. Tomus Primus: Bucolica, Georgica. Parisiis: Aillaud Guillard 1887. 447 p.; p. 360.