A introdução da noção de «subjectividade linguística» deve-se a Benveniste, com a publicação, em 1958 (no Journal de Psychologie, Jul-Set, PUF), de um artigo com o título “De la subjectivité dans le langage” (publicado depois em BENVENISTE, Émile 1966 – Problèmes de Linguistique Générale I, Paris, Gallimard, pp. 258-266, integrado na Parte V, que tem o título sugestivo de “L’homme dans la langue”). As observações de Benveniste devem tanto à sagacidade quanto à simplicidade: «C’est dans et par le langage que l’homme se constitue comme ‘sujet’; parce que la langue seul fonde en réalité, dans ‘sa’ réalité qui est celle de l’être, le concept d’‘ego’.» (Benveniste, 1966: 259) «Est ‘ego’ qui dit ‘ego’.» (ibidem: 260) «Le langage n’est possible que parce que chaque locuteur se pose comme ‘sujet’, en renvoyant à lui-même comme ‘je’ dans son discours.» (ibidem: 260) O que estas passagens ilustram é a determinação do estatuto linguístico de “pessoa” e a verificação de que o Homem está “incrustado” no sistema da língua, de tal maneira, que a sua marca subjectiva emerge do sistema a cada passo: – nos pronomes; – nos artigos; – nos advérbios; – nas formas de tratamento; – em lexemas como ir/vir, chegar/partir; – em todos os processos de modalização; – nos mecanismos de ilocução; – nas variações do paradigma verbal (em tempo, modo e aspecto) etc. A subjectividade na língua atém-se ao facto de, num acto discursivo particular, o locutor activar todo o sistema da língua ao designar-se por eu – acto linguístico primordial. A partir desse momento, todas as referências de tempo, modo e lugar giram em torno desse marco de referência fundamental que é o sujeito que diz eu. A enunciação instala assim a subjectividade no discurso, mas essa subjectividade já se encontra prefigurada no sistema da língua. O locutor ao dizer eu posiciona-se como sujeito remetendo para si mesmo e instituindo a própria existência da língua: reciprocamente, o indivíduo constitui-se a através da potencialidade da linguagem. A obtenção de eu é o resultado do processo de dizer – e ser – através da enunciação. E da interlocução: a noção de subjectividade alberga a noção de inter-subjectividade. Note-se que o eu só pode ser concebido em contraste com o tu, pois todo o exercício linguístico está situado na polaridade entre os dois sujeitos (o que acontece mesmo no monólogo). Estas observações, apesar de parecerem evidentes, tiveram (e têm) grande alcance em teorizações posteriores (na pragmática e na linguística do texto, mas também na semântica frásica) e derrogam a noção (saussureana e pós-saussureana) de língua enquanto sistema superindividual e idealizado. Para demonstrar que estas não são reflexões inconsequentes, tomo como exemplo a referenciação temporal na língua: como é que as línguas naturais referenciam o tempo? E que tempo referenciam? A expressão do tempo na língua é uma relação ou localização entre termos (eventos ou estados) em que o intervalo de tempo ocupado pela enunciação (ou seja, o intervalo de tempo em que alguém diz eu e se dirige a um tu) é o ponto de referência primordial. Esta relação tem uma orientação que ruma ao eu, actante enunciativo: o pretérito é um tempo anterior ao tempo em que há um eu que fala, o presente é um tempo simultâneo ao momento em que o eu fala; o futuro é um tempo posterior ao eu que fala. O momento da enunciação é o ponto fixo, instanciado na situação extralinguística temporal-espacial do locutor (por isso se diz que a referência temporal linguística tem uma estrutura centrípeta ou egocêntrica). Repare-se como, sob as determinações de Benveniste sobre a subjectividade na língua, a noção de “tempo linguístico” claramente se define em oposição ao: – tempo da física: entidade objectiva, linear, unidireccional, de duração infinita e capaz de se dividir num número infinitesimal de dimensões; – tempo cronológico, medido pelos relógios, pelas voltas da Terra, pelas fases da Lua; – tempo psicológico, das emoções humanas e das percepções (que é curto se fazemos aquilo de que gostamos ou que é longo se aquilo que fazemos nos é imposto). O Homem não tem outro meio de experienciar a realidade a não ser produzindo uma enunciação: o seu momento presente é a origem de todo o tempo (linguístico). Pelo contrário, o tempo dos físicos só pode ser dividido em anterior e posterior a um marco; não há momento presente ou tempo da simultaneidade. A eliminação da simultaneidade implica a eliminação do observador/locutor – justamente: trata-se do tempo da ciência e não do tempo da expressão linguística que, no seu cerne, é sempre tocado de subjectividade. Quero ainda mostrar como estas questões saem da esfera dos estudos linguísticos para, por exemplo, se irem integrar na acção de um romance: «Recordo que uma vez fiquei muito zangado com ela, a ponto de não me apetecer falar-lhe durante vários dias. Foi durante uma viagem de comboio a Copenhaga. (Fazíamos muitas vezes viagens destas nas férias escolares.) Começou quando eu lancei uma ideia que me ocorreu a propósito de qualquer coisa que estava a ler. – E se acontecer – disse eu – que a palavra “eu” seja uma palavra sem qualquer sentido? “Eu” utiliza-se na linguagem do dia-a-dia exactamente da mesma maneira que se utiliza “aqui” ou “agora”. Todas as pessoas têm o direito de chamar-se “eu”, e ao mesmo tempo apenas uma pessoa de cada vez tem esse direito: a pessoa que está a falar. Ninguém imagina que “aqui” ou “ali” significa alguma coisa em especial, que existe alguma coisa por trás dessa palavra. Então por que razão havemos de imaginar que temos um eu? Ele pensa em nós. Sente. Fala. Mais nada. Ou: ele pensa aqui, disse eu, pousando o dedo na testa. – Se continuas com essas especulações ainda dás comigo em doida – disse ela. (...) A perpétua recordação humilhante de que a solidão é uma impossibilidade, de que um ser solitário é coisa que não existe. De que a palavra “eu” é a mais vazia de todas. É o ponto oco da língua. (Tal como um ponto central é necessariamente oco.)» GUSTAFSSON, Lars (1992) 2001 – A Morte de um Apicultor, Asa