Esta dúvida é muito interessante, pois, aparentemente, parece que há um erro de concordância, mas, tratando-se de uma fábula escrita, como poderia surgir tal erro? Incorrecção, ou não?
Em primeiro lugar, esclareçamos que a palavra empregado nesta frase não é um adjectivo, mas um substantivo, o que se pode ver pelo uso do possessivo («meu empregado»).
Vou começar por esclarecer a dúvida — que julgo ser a seguinte: «Como hiena é uma palavra feminina, deverá empregar-se o masculino (meu empregado), ou o feminino (minha empregada)?» —, passando, depois, à justificação.
Assim, deverei dizer que há contextos em que a construção «a hiena é meu empregado» se aceita.
Para se compreender a minha afirmação, vou focar, então, três aspectos:
1.º – Os substantivos epicenos e a diferença entre género natural e género gramatical;
2.º – O contexto em que a frase surge;
3.º – A concordância com substantivos epicenos.
1.º Os substantivos epicenos, o género natural e o género gramatical
Nos substantivos (ou nomes) que referem um ser animado (pessoa ou animal), o valor de género corresponde, em geral, a uma distinção de sexo: a palavra professor designa uma pessoa do sexo masculino, e professora, uma do sexo feminino; a palavra leão designa um animal do sexo masculino, e leoa, um do sexo feminino. O género gramatical (o estabelecido pelos morfemas da palavra) corresponde normalmente ao género natural (o que se fundamenta no sexo biológico dos seres).
Uma das excepções é a dos substantivos epicenos. O substantivo epiceno designa um animal e tem só uma forma gramatical (masculina ou feminina) para os dois sexos. Assim, temos, por exemplo, o corvo (género gramatical masculino) e a águia (género gramatical feminino): independentemente do género gramatical, estas palavras designam animais de ambos os sexos. Na maior parte dos casos, não importa a informação a respeito do sexo do exemplar de que se está a falar, mas, quando interessa, ou se empregam as palavras macho e fêmea para especificar (águia-macho, corvo-fêmea) ou se deduz pelo contexto.
O termo hiena é um substantivo epiceno: tem forma gramatical feminina («a hiena») e designa tanto um animal do sexo masculino como um do sexo feminino.
2.º O contexto em que surge a construção «a hiena é meu empregado»
Esta frase surge num texto de um manual escolar, adaptado de um da obra A Narrativa Africana, de Lourenço Joaquim da Costa Rosário. De referir que na obra do autor Contos Moçambicanos do Vale do Zambeze são utilizados outros termos («a hiena é meu serviçal»; «a hiena é o meu servidor fiel»). Para o esclarecimento da dúvida, não importa qual o termo utilizado (embora os originais sejam melhores); importa que os termos «meu empregado», «meu serviçal» e «o meu servidor fiel» estão no masculino e que a palavra hiena é um substantivo epiceno de género gramatical feminino (a hiena). Assim, em princípio, parece haver aqui uma incorrecção na concordância.
Para se verificar se há, ou não, incorrecção, é necessário analisar o contexto: segue-se, então, um resumo da narrativa na qual é utilizada essa concordância.
«O coelho e a hiena eram amigos.
Um dia, a hiena vê uma rapariga por quem se apaixona e pede-a em casamento; esta aceita, pondo-lhe como condição que a hiena fale com os pais dela e traga um padrinho. Entretanto, o coelho vê a mesma rapariga e também se apaixona por ela, pedindo-a em casamento. Ela responde-lhe que já tinha dado a sua palavra à hiena. O coelho ridiculariza o seu rival, dizendo que uma rapariga tão bonita não devia casar com um qualquer, explicando que a hiena era «seu serviçal» e lhe servia de cavalo quando ele queria. A rapariga ficou humilhada e pediu-lhe provas do que afirmava.
A hiena, sem saber de nada, pede ao coelho que seja seu padrinho. O coelho faz-se rogado, dizendo que se tinha picado num pé, e, ardilosamente, acaba por se aproveitar da boa-fé da hiena, que lhe diz que o leva às costas e aceita que o coelho lhe ponha uma corda ao pescoço para se segurar, chegando assim os dois junto da pretendida noiva: o coelho no dorso da hiena, como se esta fosse um cavalo puxado pelo coelho.
A rapariga casou com o coelho.»
Trata-se, como se pode ver, de um conto que não tem nada de edificante, mas o que importa agora é a tal concordância. Apercebemo-nos de que se trata de uma hiena do sexo masculino. E, neste resumo, há uma concordância no feminino com a palavra hiena (apesar de se saber que esta palavra, neste contexto, designa um animal do sexo masculino): «como se esta fosse um cavalo». Como se faz, então, a concordância?
3.º A concordância com substantivos epicenos
Neste caso, temos duas situações: uma que é realmente de concordância (artigos, determinantes, pronomes, adjectivos) e outra que é a da utilização de um substantivo (ou de um grupo nominal) por meio do qual se caracteriza esse indivíduo que tem nome feminino mas que é do sexo masculino.
Assim, quando à palavra hiena se ligam artigos, pronomes ou adjectivos, estes têm de assumir o género feminino, independentemente do sexo do animal: «a hiena» (e não «o hiena»), «esta hiena» (e não «este hiena»), «a hiena mostrou ser ing{#é|ê}nua» (e não «ingénuo»), «como se esta fosse um cavalo» (e não «como se este fosse um cavalo»).
No entanto, no caso de substantivos (ou de grupos nominais), já não estamos no plano da concordância gramatical, mas no da atribuição de uma informação de valor semântico àquele animal que é do sexo masculino. Assim, a hiena era um empregado (um serviçal ou um servidor) do coelho, e não «uma empregada», pois não era um ser do sexo feminino.
Do mesmo modo, por exemplo, se diz, a respeito de um substantivo relativo a pessoas, mas que também só tem uma forma para os dois géneros: «A última vítima a ser salva é empregado desta empresa há mais de vinte anos.» Com esta frase, ficamos a saber que a vítima era do sexo masculino.
Em conclusão, no contexto deste conto, estão correctas as construções «a hiena é meu empregado», «a hiena é meu serviçal», «a hiena é o meu servidor fiel».