Quando um texto narrativo está escrito na primeira pessoa, somos naturalmente levados a questionar-nos sobre a classificação do narrador, pois o seu discurso sugere a ilusão de proximidade com os intervenientes na história que narra. Não é frequente ver-se um narrador de primeira pessoa nos textos de cariz autobiográfico, em que há coincidência entre o narrador e o protagonista? Ou, então, a narrar alguma história que viveu, mesmo não sendo a personagem principal? Temos, por isso, uma certa dificuldade em gerir a ideia de que esse «eu» que conta poder não estar presente na ação/história que nos conta. Mas, para nos libertarmos de qualquer dúvida sobre a sua classificação, devemos lembrarmo-nos de que «a persona do narrador não deve ser caracterizada e definida em função de formas gramaticais, mas em função do seu estatuto narrativo» (Vítor M. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1983, p. 761).
Não há, portanto, lugar para dúvidas de que o facto de o narrador se manifestar como um «eu» explícito que conta a história não implica que seja uma das personagens da narrativa. Nesse caso, ele é a voz que narra, que produz o texto narrativo, e que, ao assumir-se como narrador de primeira pessoa, se quer demarcar como alguém que conhece a história que vai narrar.
Ora, se «não é co-referencial com nenhuma das personagens da diegese e se não participa, por conseguinte, na história narrada, esse narrador é classificado como heterodiegético» (idem), ou usando uma terminologia mais comum, como não participante, distinguindo-se, assim, do narrador autodiegético (co-referencial com o protagonista) e do narrador homodiegético (co-referencial com uma das personagens), os que participam na a(c)ção, quer como personagem principal, quer como secundária.