A frase em causa não apresenta uma construção de sujeito nulo, é mesmo um exemplo de um emprego dialectal brasileiro que consiste em atribuir a lhe a função de objecto directo. A solução do problema está na própria tradução em inglês, confirmada pelos próprios falantes brasileiros. A frase de Paulo Coelho pode, portanto, ser parafraseada, com reforço do pronome oblíquo, do seguinte modo:
1 – «Dê poder a alguém, e ele o venderá (a você) no mercado de escravos.»
Ou, de forma mais clara, na voz passiva:
2 – «Dê poder a alguém, e você será vendido por essa pessoa no mercado de escravos.»
Trata-se de um uso que não faz parte do padrão culto e que é conhecido, como diz o consulente, por lheísmo, assim descrito pelo Dicionário Houaiss (s. v. lheísmo):
«fenômeno linguístico que ocorre em alguns dialetos (sociais ou regionais, ou ambos) do português do Brasil, que consiste em substituir por lhe(s) os pronomes o(s), a(s) (referentes ao tratamento você, vocês), na função de objeto direto (p. ex.: ele lhe convidou para ir ao cinema?).»
Em nota, acrescenta-se ainda:
«para explicar essa tendência de eliminar da linguagem brasileira as formas oblíquas (l)o(s)/(l)a(s), têm-se invocado já a ação da analogia (A. Nascentes), já razões de ordem fonética (J. Mattoso Câmara Jr.); cumpre notar: a) que o esp[anhol] le(s), da mesma fonte que o port[uguês] lhe(s), foi desde cedo empr[egado] alternativamente com lo(s)/ la(s) — correspondentes ao port[uguês] o(s)/a(s) —, de tal modo que pôde acumular as funções de obj[eto] dir[eto] e de obj[eto] ind[ireto], acumulação que se documenta cedo na Península Ibérica; b) que o fenômeno no Brasil parece não se vincular com o caso espanhol, embora possa sê-lo; c) que, no coloquial brasileiro, o(s)/a(s) foram sendo ger[almente] abandonados (por progressiva atonificação) no NE e nas regiões mais ao sul, ocorrendo no NE sua substituição por lhe(s), enquanto no Sul se partia para o emprego de pronome de tratamento: NE: eu lhe vi; eu lhe espero aqui; eu lhe amo, Sul: eu vi você/eu vi o senhor/a senhora etc.; eu espero você/eu espero o senhor/a senhora etc.; eu amo você/eu amo o senhor/a senhora etc.»
Que escritores brasileiros de nomeada recorram a esta construção não é de admirar. Como afirma o Dicionário Houaiss (s. v. lhe), o lheísmo aparece «em algumas partes do Brasil, como o Rio de Janeiro, esp[ecialmente], na linguagem coloquial (mas com repercussões na linguagem literária, não raro)».