É legítima a minúscula inicial de picasso, usado como nome comum em «um picasso», mas legítima também parece a grafia ferrari (em itálico, mantendo a grafia italiana; ferrári, aportuguesando-a), igualmente com minúscula inicial, para referir um carro da marca Ferrari.
Eis as razões:
1. Os acordos ortográficos que têm vigorado em Portugal (tanto o de 1945 como o de 1990) não se referem diretamente aos casos em questão, os quais consistem na reutilização de nomes próprios de pintores e de marcas como nomes comuns. No entanto, o acordo de 1945 (Base XXXIX) observa que «[..] [r]elativamente a[os nomes de raças, povos ou populações, qualquer que seja a sua modalidade, os nomes pertencentes ao calendário, com excepção das designações dos dias da semana, escritas sempre com minúscula, e os nomes de festas públicas tradicionais], [...] é importante distinguir deles as formas que podem corresponder-lhes como nomes comuns e que, como tais, exigem o emprego da minúscula inicial: "muitos americanos", "quaisquer portugueses", "todos os brasileiros"; "fevereiro" (nome de uma ave), "outonos" (cereais que se semeiam no Outono), "primavera" (nome de plantas)». É verdade que parte do que se diz nesta passagem não é mantida pelo acordo ortográfico de 1990 (AO 1990), o qual determina a minúscula inicial para os «nomes pertencentes ao calendário»; no entanto, interessa é realçar que o texto de 1945 estabelece o princípio da minúscula inicial nas formas correspondentes à transposição de nomes próprios como nomes comuns.
2. O princípio acima enunciado é generalizável a todos os nomes comuns, tendo em conta o que Rebelo Gonçalves, no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, p. 336, n. 2), escreveu: «[deve-se] advertir que todo o nome comum que reproduz nome próprio [...] postula, salvo caso particular (p. ex., colocação em início de período), a minúscula inicial: áfrica, "façanha"; calvário, "martírio"; falperra, "lugar infestado de salteadores"; gólgota, "lugar de suplício" ou "suplício"; luís, "moeda francesa"; madeira, "vinho da Madeira"; penates, "casa paterna" ou "lar"; porto, "vinho do Porto"; xerez, "vinho de Xerez", etc.» À luz deste preceito, «um quadro de Picasso» é «um picasso», com minúscula inicial em picasso; e «um carro da marca Ferrari» é um «um ferrari», também com minúscula inicial. O que se acaba de expor leva em conta os preceitos do acordo de 1945 e os textos que, de alguma forma, o completavam, como é o caso do Tratado... de R. Gonçalves. Será conveniente que as entidades que monitorizam a aplicação do AO de 90 confirmem o uso da minúscula inicial nestes casos.
3. Note-se ainda que, se, por um lado, a minúscula inicial parece recomendável, por outro lado, ressalta o problema de, entre os nomes de pintores e os das marcas, haver muitos de configuração estrangeira (Rembrandt, Kandinsky, Ford) que não têm enquadramento nos princípios da nossa ortografia. Poderia argumentar-se que a sua transposição como nomes comuns é um fenómeno de derivação imprópria (também chamada conversão, em propostas mais recentes), e, portanto, tais nomes comuns têm enquadramento na ortografia do português; no entanto, há estudos que contrariam a visão de serem estes casos de derivação (ver M. Correia e L. San Payo de Lemos, Inovação Lexical em Português – esta autoras classificam a conversão de nomes próprios em nomes comuns como reutilização de palavras já existentes). Neste contexto, se a reutilização de nomes próprios como nomes comuns não é um tipo de derivação, então, os nomes comuns com grafias estrangeiras violam o disposto no acordo de 1945 (Base I e II) e no AO 90 (Base II e III). A solução para os nomes que mantêm a ortografia original será usá-los em itálico, mas esta via pode suscitar outro tipo de problemas (por exemplo, do ponto de vista tipográfico, a sobrecarga visual da página).
4. Se a forma italiana Ferrari, que em italiano é palavra grave (isto é, acentuada na penúltima sílaba), ocorrer como nome comum e se de facto não é este um caso de derivação (ver discussão em 3), deverá ela, como é prática corrente, ser assinalada na escrita como estrangeirismo, entre aspas ou em itálico: ferrari. Note-se que, em português, não é possível aceitar esta grafia dado a leitura correspondente ser a de uma palavra aguda (como percebi – as palavras sem acento gráfico terminadas em -i são agudas), e não a de uma palavra grave, como exige a sua pronunciação correta ("ferrári"). Na verdade, para um aportuguesamento gráfico adequado, mantendo a acentuação grave, este substantivo terá de apresentar um acento agudo na penúltima sílaba: ferrári. Trata-se, porém, de uma grafia inusitada, o que torna esta palavra mais um caso problemático que, afinal, se soma aos mencionados em 3, todos eles relativos ao uso, como nomes comuns, dos nomes próprios escritos com letras e arranjos gráficos estranhos à ortografia do português.
Mais haveria, portanto, a considerar sobre a ortografia dos nomes comuns em apreço. Mesmo assim, retomando o que foi dito antes, recomenda-se a minúscula inicial de ferrari (ou ferrári) e picasso em referência a, respetivamente, um carro da marca Ferrari e um quadro concebido por Picasso.
N. E. (atualização 3/05/2016): As considerações sobre ferrari/ferrári, foram corrigidas, na sequência de observações que recebemos.