O estatuto diferencial de herói está intimamente ligado ao universo do mito.
Repare-se que a própria definição de herói remete para a mitologia clássica, tal como nos afirma Joel Schmidt, no seu Dicionário de Mitologia Grega e Romana (Lisboa, Edições 70, 2002): «É chamada herói, na mitologia, toda a personagem que exerceu, sobre os homens e sobre os acontecimentos, uma determinada influência, que lutou com tanta bravura, ou realizou feitos de uma tal temeridade, que se elevou acima dos seus semelhantes, os mortais, e que pôde ousar aproximar-se dos deuses, merecendo assim depois da morte uma veneração e um culto particulares» (p. 141).
Enquanto personagem que se destaca pela excecionalidade com que enfrenta os mais difíceis obstáculos, é natural que o herói esteja irremediavelmente associado à epopeia, razão pela qual tenha sido «a poesia épica, a Ilíada em particular, [...] a primeira a criar a ideia de herói. É assim que vemos Aquiles, Ajax, Ulisses e muitos outros entregarem-se, durante os combates da guerra de Tróia, a autênticos prodígios de habilidade e de coragem. Mas, desde a sua nascença, estes heróis já são diferentes dos homens. Na sua maior parte, eles são filhos de um deus ou de uma deusa de quem recebem, durante a sua existência, ajuda e protecção» (idem).
Portanto, para os clássicos (literatura greco-latina) e, posteriormente, no Renascimento (em que se tomou o legado greco-latino como referência), o herói acumulava os dois domínios, épico e mítico. Basta pensarmos no herói d´Os Lusíadas (obra do Renascimento) para não termos dúvidas: o perfil deste herói coletivo, evidenciando «todas as capacidades de afirmação do Homem ao enfrentar a adversidade dos deuses e dos elementos» (Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. II, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1999, p. 1002), cujo comportamento se reparte «por um tríptico de grandes valores, no seio dos quais se move expeditamente: é a bravura militar destemida, a nobreza cavaleiresca e a excelsitude no Amor» (idem, p. 1006).
Assim, para se definir o herói épico importa não esquecer que este ganha vulto como protagonista de narrativas heróicas, sobretudo épicas que, por sua vez, se distinguem pelo facto de aí «haver um lugar especial para a fantasia, a inverosimilhança, o imprevisto, confirmando que o terreno discursivo onde impera o heroísmo obedece a regras próprias» (idem, p. 1003).
Apesar da centralidade exemplar do herói épico, a configuração do herói foi-se transformando de acordo com o enquadramento histórico-cultural, uma vez que «se trata de uma personagem variavelmente construída e modulada de acordo com as premissas ideológicas, motivada literária e historicamente, e portanto sujeita à própria estrutura técnico-compositiva do texto» (idem). De qualquer modo, há atributos inerentes ao conceito de herói que se mantêm — as características de qualificação e exceção pelas quais «se destaca das restantes figuras que povoam a história [...], definindo-se pela convergência de determinadas qualidades e pelo caráter inédito e exemplar que elas possam assumir perante o universo fictício ou real da história» (idem).
A pouco e pouco, a figura de herói foi-se tornando mais humana, mais real, sem com isso perder a grandiosidade, pois move-se num universo «agridoce do perigo e da aventura, misto de sedução e de sofrimento, presente entre as inúmeras motivações que o impulsionam para abraçar novos desafios e novas lutas». É, portanto, e antes de mais, «um agente de fractura nas vivências comuns a toda a sociedade, e que prefere enveredar por comportamentos e ações que inauguram novos trilhos que, progressivamente, o vão desviando das outras personagens e dos valores de que partilham» (idem). Este herói não é necessariamente um guerreiro que enfentra exércitos e que sai vencedor de todas as lutas vividas. É, antes de mais, aquele que sobressai pela determinação e pela entrega a uma causa, esquecendo-se de si próprio em favor da luta por um sonho. Tornam-se mitos de outro modo, vencendo a morte pela projeção que ganharam como marcas de referência para a sociedade, sendo assinalados como exemplos a seguir.
Concluindo: enquanto todo o herói épico é um herói mítico, essa realidade não se mantém, obrigatoriamente, na configuração do herói mítico, pois este pode não ser um herói épico. Por exemplo, n’Os Lusíadas o herói é, sobretudo, épico (não entrando nesta classificação Inês de Castro), ao passo que em Mensagem surge o herói mítico por excelência, aquele cuja vida foi a entrega a uma causa, a um sonho, algo que permanece no espírito dos vindouros e lhes passa a mensagem de missão a cumprir (D. Sebastião, Padre António Vieira…).