A expressão em apreço está correta, porque é possível associar golfada não só a matéria líquida mas também ao ar que se respira.
Relaciona-se geralmente golfada, que significa «jorro, jato, vómito», com a ideia de líquido, e por isso ocorre a palavra frequentemente com outras como sangue, por exemplo, na expressão «golfada de sangue» ou em «sangue às golfadas» (ver dicionário da Academia das Ciências).
Contudo, a expressão «às golfadas» pode também ser associada à noção de ar, o que permite dizer que «se respira (ar) às golfadas», que «se inspira (ar) às golfadas», além de existir «ar às golfadas» ou de haver «golfadas de ar». Encontram-se exemplos deste uso na literatura:
1 – «Mas, neste naufrágio que agora contemplo na minha imaginação, vejo alguns homens varridos pelas ondas, atirados pela borda fora, amaldiçoando o mar antes de morrerem com os pulmões cheios de água. Avidamente inspiram umas últimas golfadas do ar que agitadamente os mata. O barco tem o leme partido, as velas esfarrapadas, um mastro derrubado» (Maria Isabel Barreno, O Senhor das Ilhas, 1994, in Corpus do Português).
2 – «Leu toda a noite, sentado aos pés da cama, respirando a largas golfadas, com a delícia de quem sai de um cárcere, a atmosfera que o envolvia, feita das emanações de Ideal, exaladas daqueles volumes românticos» (Eça de Queirós, A Capital, idem).
Também no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa há atestação desse uso:
3 – «um projector enorme acendendo-se e apagando-se continuamente e correndo, no mesmo ritmo das nuvens. [...] dir-se-ia que lançava, cá para baixo, uma golfada de ar tão forte, que toda aterra se transia e arrepiava» (Ferreira de Castro, Terra Fria, p. 167).
Nota (10/05/2016): Recebo do consulente João de Brito (Vila Real) a seguinte observação:
«Penso que a questão deveria ser agarrada pelo lado da entrada/saída da matéria em causa, em vez de pelo lado da natureza da referida matéria. Não encontrei dicionário algum em que golfar significasse o movimento de fora para dentro. O conteúdo da citação (Maria Isabel Barreno, O Senhor das Ilhas, 1994, in Corpus do Português) contraria os dicionários e o sentido das outras duas citações, estas de autores bem mais conceituados» (30/03/2016)
Agradecendo o comentário, concordo que se encare golfada do ponto de vista da direção do movimento. Mas não acho que esse movimento seja apenas de dentro para fora. A expressão queirosiana «respirar a largas golfadas» parece marcar tanto entrada de ar como a saída dele; além disso, a consulta de outras ocorrências textuais de golfada permite concluir que a palavra também ocorre em referência a uma entrada (geralmente, de ar); por exemplo, novamente em Eça de Queirós:
(i) «Passou-se o Inverno no campo, nos castelos, na caça, e antes do encontro oficial em Londres, vai-se respirar a Paris uma larga golfada de civilização [...].» (Cartas de Inglaterra in Linguateca)
Uma interpretação coerente de (i) é considerar que «vai-se respirar....» é equivalente a «vai-se absorver...) – um movimento de fora para dentro.
Dou outra ocorrência, do escritor brasileiro Erico Veríssimo, a qual se inscreve no mesmo tipo de interpretação:
(ii) «Vem de fora, pela porta aberta, uma golfada de vento gelado.» (Caminhos Cruzados, Lisboa, livros do Brasil, 2.ª edição in Corpus de Referência do Português Contemporâneo)
Mesmo que se trate de um uso mais marginal, a citação de Maria Isabel Barreno não constitui um erro e ilustra a possibilidade de «golfada de ar» se aplicar também a um movimento de entrada. Eu diria, portanto, que golfada marca como evento um fluxo que se distingue pela sua intensidade e que pode fazer parte de uma série – daí a expressão «às golfadas».