DÚVIDAS

Entidades não humanas e o adjetivo simpático

Pode um sítio ser simpático? E um objecto? É a simpatia exclusiva dos seres vivos?

Conheço uma pessoa que regularmente afirma «este sítio é simpático» ou «este jantar é simpático», mas não consegue clarificar exatamente o que isso significa. Gera-se então a discussão do que significa ser simpático e se pode ser aplicável a lugares e objectos inanimados.

dicionário Priberam define simpático como «que inspira simpatia». Consigo conceber que isso se aplique a um local (mas não uma refeição) até ler a definição de simpatia no mesmo dicionário: «Sentimento de atração moral que duas pessoas sentem uma pela outra.» Esta definição nem dá latitude para animais serem simpáticos (discutível), mas parece de todo fechar a porta a objetos. Isto é, até ler a definição de moral: «Não físico nem material (ex.: estado moral). = ESPIRITUAL.» Um sítio pode invocar uma atração espiritual, mas se formos por este caminho temo que já nos estejamos a afastar demasiado do cerne da questão.

Recapitulando: pode a palavra simpático ser aplicada a seres não vivos?

Resposta

O adjetivo simpático pode surgir em construções aplicado a entidades não humanas.

O adjetivo simpático deriva do nome simpatia e dele herda os traços semânticos que, nas aceções mais gerais, contribuem para a descrição de uma «afinidade moral, similitude no sentir e pensar que aproxima duas ou mais pessoas»1. Também pode descrever uma «impressão agradável, disposição favorável que se experimenta em relação a alguém que pouco se conhece»1 ou referir uma «pessoa que costuma ser agradável, delicada, afável»1. Podemos, assim, concluir que simpatia/simpático nas aceções denotativas previstas nos dicionários se aplica a entidades humanas.

No entanto, na língua, é possível recorrer a processos de extensão semântica, mais ou menos criativos, que permitem usos que à partida não estavam previstos. Estes procedimentos podem ocorrer, por exemplo, por meio de recursos expressivos que exploram usos criativos da linguagem. Tal pode ocorrer com o adjetivo simpático, que, por exemplo, por meio da construção de uma hipálage2, pode ser aplicado a entes não humanos. Tal acontece porque este recurso permite a transferência de uma característica humana para um animal ou objeto. Neste contexto, no Corpus do Português, de Mark Davies, na secção histórica, os usos do adjetivo simpático aplicado a diversas realidades estão bem documentados, o que mostra que nem sequer estamos perante um modismo recente:

(1) «Trazia um vestido simples, simpático, alegre, um grande avental claro – e os dentes brancos sorriam, iguais, ternos, brilhantes, na boca grande e voluptuosa da Fifi doutros tempos.» (Augusto de Castro, A Arca de Noé. 1952)

(2) «O Vitória-Bar era um recanto simpático onde se reuniam, depois dos espectáculos, papillons e coristas.» (João Gaspar Simões, Uma História de Província: Vida Conjugal. 1936)

(3) «E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho piano mal firme nos seus três pés torneados […]» (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro)

(4) «Entregue ao domínio de uma madrasta, que não desmentia, pela sua parte, a fama que de ordinário acompanha este pouco simpático nome, tivera a experimentar […].» (Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor.)

Disponha sempre!

 

1. Consultámos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

2. A hipálage é um recurso retórico que «consiste na atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado» (Rosa Duarte in E-dicionário de termos literários).

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa