No discurso direto, o narrador deixa a personagem expressar-se por si mesma, isto é, ocorre a reprodução textual das falas da personagem. Ele apresenta-a e deixa-a livremente falar. As vozes do narrador e da personagem são claramente distintas.
Veja-se o exemplo seguinte:
«Carlos, outra vez sereno, acabava a sua chávena de chá. Depois disse muito simplesmente:
– Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar o Cohen. […]»
Eça de Queirós, Os Maias, cap. IX, ed. Livros do Brasil, pp 269-270
Neste excerto, identificamos sem dificuldade as vozes do narrador, que apresenta a personagem, e a de Carlos da Maia que fala diretamente com o amigo, João da Ega.
No plano formal, o discurso direto – o da fala de Carlos – foi introduzido pelo verbo dizer, como geralmente se usa: verbos declarativos, interrogativos, do tipo dizer, afirmar, perguntar, responder, e sinónimos, ou avaliativos/volitivos, do tipo confessar, compreender, querer, saber… Na ausência de um destes verbos, o contexto e os recursos gráficos (os dois pontos, as aspas, o travessão e a mudança de linha) permitem identificar a fala da personagem. Ex.:
«Olhou para o Adérito com intensidade, como se quisesse ler-lhe os pensamentos.
– Sabe por que o mandei chamar?»
Maria Judite de Carvalho, Tanta Gente, Mariana, Círculo de Leitores, p.76
No discurso direto livre, frases em discurso direto aparecem no meio da narração, como se fosse uma intrusão de frases do discurso direto de uma personagem no meio da voz do narrador. Ex. (retirado do Dicionário Terminológico)1:
«A mulher do médico desviou os olhos, mas era tarde de mais, o vómito subiu-lhe irresistível das entranhas, duas vezes, três vezes, como se o seu próprio corpo, ainda vivo, estivesse a ser sacudido por outros cães, a matilha da desesperação absoluta, aqui cheguei, quero morrer aqui.»
José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, 1995
No exemplo imediatamente acima, a inserção da sequência «aqui cheguei, quero morrer aqui» na narração é uma marca do discurso direto livre, por estar na primeira pessoa e referir-se à situação em que uma personagem («a mulher do médico») é enunciadora.
No discurso indireto livre, o enunciado é realizado na terceira pessoa, o narrador reproduz, mas sem reformulação, as falas da personagem, mantendo as marcas de oralidade, próprias do discurso direto. As personagens têm voz própria, mas esta confunde-se com a do narrador, verificando-se uma espécie de mistura dos dois tipos de discurso. Este modo de relato do discurso «aproxima narrador e personagem, dando-nos a impressão de que passam a falar em uníssono» (Celso Cunha, L. Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Ed. Sá da Costa). Ex.:
«Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu o senhor administrador. Mimos e mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro!»
Eça de Queirós, Os Maias, cap. III, ed. Livros do Brasil, pp. 61-62
Como se verifica, as fronteiras entre as vozes do narrador e personagem esbatem-se, diluem-se, num efeito de grande expressividade, criado pela liberdade da rutura sintática que é assumida claramente. Este hibridismo evita simultaneamente o uso recorrente de conjunções subordinadas, a frequência dos cortes do diálogo, próprios do discurso direto, imprimindo uma elaboração mais sofisticada e, por isso, mais estimulante para o leitor.
Fonte: Celso Cunha, L. F. Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Ed. Sá da Costa
1 Atualização (25/05/2017) – O termo «discurso direto livre» faz parte do Dicionário Terminológico (DT), que, em Portugal, se destina a apoiar o estudo da gramática nos ensinos básico e secundário. Deve observar-se que, conforme as definições e os exemplos apresentados pelo DT, não se afigura clara a diferença que separa o discurso direto livre do discurso indireto livre, dado que os dois são definidos de maneira semelhante. Com efeito, se acerca da caracterização do primeiro se diz que «as palavras ou os pensamentos de uma personagem são reproduzidos como que imersos no discurso do narrador tal como aquela os formulou, sem que o narrador assinale com marcas formais», a respeito do segundo também se afirma que «as fronteiras entre a voz de um e a voz de outro são dificilmente delimitáveis». Pode talvez depreender-se, como, aliás, se faz na resposta, que a distinção fundamental se relaciona com a reprodução exata, por parte do discurso direto livre, de sequências em discurso direto, incluindo marcas de 1.ª e 2.ª pessoa, inseridas diretamente no relato do narrador; no discurso indireto livre, muito embora se conserve a maior parte das características do discurso direto, só se aceitam marcas de 3.ª pessoa.»