A problematização do uso da forma lexical desmistificar é uma excelente oportunidade para uma reflexão ponderosa acerca do contexto em que surge, confrontando-a com a palavra desmitificar, com a qual muitas vezes se confunde.
Para essa reflexão tomarei como ponto de partida uma dúvida e um juízo de agramaticalidade de dois consulentes do Ciberdúvidas: José Preto Ribeiro, em 1999, perguntava se em frases como «... é preciso desmistificar a ideia de que... (os nossos jogadores são piores do que os outros)» o emprego do termo desmistificar estaria correcto, uma vez que o seu conhecimento de falante do português indicava como mais adequada a utilização do lexema desmitificar para significar «é preciso desfazer o mito»; Noémia Lemos, em 2007, aponta como agramatical a ocorrência do termo desmistificar na frase «Apesar do contributo da ciência para desmistificar uma antiga crença popular, a ideia do queijo como alimento nocivo à memória ficou cristalizada na expressão fixa "comer (muito) queijo"», pertencente à resposta de uma consultora do Ciberdúvidas, Sónia Valente Rodrigues, sobre a expressão «Andar a comer muito queijo». As questões levantadas por estes dois consulentes levaram-me à ponderação seguinte:
1 — Confrontando as duas frases citadas (ambas com desmistificar), apercebemo-nos da diferença de contexto em que surgem. Vejamos:
Exemplo 1 — «É preciso desmistificar a ideia de que os nossos jogadores são piores do que os outros.»
Exemplo 2 — «A ciência veio desmistificar a crença popular (o queijo enfraquece a memória)» (frase citada com alteração para comodidade expositiva).
O pressuposto em cada uma das frases será:
— no caso do exemplo 1, há um mito em torno dos jogadores portugueses (= concepção ilusória acerca de um grupo profissional) = mitificação dos jogadores;
— no caso do exemplo 2, há um mito em torno do queijo. (= forma de pensamento primitiva, não científica). = mitificação do queijo.
Ora, a ideia de concepção errada de uma certa realidade (ingerir queijo = enfraquecer a memória), que sabemos hoje, através da ciência, ser enganosa e pouco consentânea com a verdade dos factos, está vazada no exemplo 2 através da expressão «crença popular». Assim, seria uma redundância escrever «desmitificar a crença», que, grosso modo, equivaleria a «desmitificar o mito». Daí a preferência por desmistificar, vocábulo utilizado conscientemente com o sentido de «desfazer o engano (presente na crença popular)». A utilizar o termo desmitificar, teria de modificar o seu contexto frásico e escrever «A ciência veio desmitificar o queijo (como alimento que prejudica a memória).
2 — O juízo de (a)gramaticalidade no caso do emprego lexical deve integrar não só os significados fixados por gramáticos, lexicólogos e filólogos nos dicionários, mas também o contexto frásico em que os termos são usados, a fim de se avaliar o seu grau de adequação sintá(c)tica, semântica, discursiva e pragmática.
3 — Por curiosidade em relação a esta questão do emprego correcto/incorrecto das formas «desmitificar» e «desmistificar» em contexto frásico, fiz uma rápida pesquisa no corpus CETEMPúblico, que é o Corpus de Extractos de Textos Electrónicos MCT/Público de aproximadamente 180 milhões de palavras em português europeu, da Linguateca, para conhecer a frequência de emprego de cada uma das formas no português europeu escrito. Os resultados mostraram que, em contextos idênticos, a forma desmistificar é, comparativamente a desmitificar, de frequência muito mais elevada (desmistificar = 226 ocorrências; desmitificar = 17 ocorrências; desmistifica = 63 ocorrências; desmitifica = 3 ocorrências).
Não conheço nenhum estudo sobre esta matéria (falha minha), mas estes dados, que só por si significam apenas uma curiosidade, revelam uma realidade que seria interessante estudar do ponto de vista da lexicologia e da noção de erro.
Finalmente, estando consciente da responsabilidade inerente à função de consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e não tendo qualquer intenção de me desobrigar de um uso correcto da língua na produção textual correspondente ao exercício desta actividade, sempre direi que uma leitura crítica da realidade e das pessoas diminui a mitificação para que tendemos, porque a riqueza humana reside na sua imperfeição. Se tivesse havido erro (isto é, desvio em relação à norma de uso) na frase que usei no texto «Memória e comer muito queijo», ser-me-ia desculpável certamente. Quanto mais não fosse porque errare humanum est.
N.E.: desmistificar significa «desfazer a mistificação de; denunciar (um erro)». Por sua vez, mistificação quer dizer «logro; burla». Desmitificar significa «desfazer (um mito); despojar de consagração». Mito quer dizer, entre outras coisas, «representação falsa, por simplista, mas geralmente admitida por todos os membros de um grupo».