De facto, como notam Telmo Móia e João Andrade Peres (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, p. 237), a este propósito, «[...] o clítico se apassivante acompanha sempre formas de verbos transitivos, flexionados no singular ou no plural consoante o número gramatical do argumento com que concordam [...]:
(1) Comprou-se um livro encadernado;
(2) Compraram-se vários livros para a biblioteca.
Em qualquer destas frases, a expressão com que o verbo concorda é um argumento interno que se realiza numa frase ativa como um complemento direto, razão por que afirmamos estar perante uma construção passiva (de clítico)».
Já no que diz respeito ao clítico se impessoal, referem os citados investigadores (op. cit., pp. 236-237) que «é uma expressão que indica a existência de um sujeito indeterminado numa frase. [...]:
(3) Naquela festa, cantou-se a noite inteira.
(4) Vive-se bem em países de clima mediterrânico.
(5) Ouve-se ruídos durante a noite.
Este clítico impessoal acompanha sempre formas verbais singulares. As frases em que ele ocorre são frases de sujeito indeterminado em que o verbo surge numa forma de terceira pessoa do singular, não concordando com qualquer expressão da frase. Distingue-se, pois, neste aspeto, do clítico apassivante, que pode ser combinado [...] com formas verbais singulares e plurais. [...] o clítico impessoal distingue-se ainda do clítico apassivante no que respeita ao tipo de verbos com que se pode combinar. Com efeito, pode surgir tanto em frases com verbos intransitivos [cf. (3) e (4), em que temos os verbos cantar e viver, respetivamente], como em frases com verbos transitivos [cf. (5), em que temos o verbo ouvir]. Já o clítico se passivo só é compatível [...] com verbos transitivos».
A propósito, justamente, do aspeto que salienta o prezado consulente, dizem ainda Móia e Andrade que «importa notar que alguns puristas apenas admitem as construções em que o clítico se impessoal se combina com verbos intransitivos, rejeitando, pois, frases em que o verbo é transitivo e tem um segundo argumento não preposicionado com que não concorda», como acontece no enunciado aqui proposto – «pode-se descrevê-las» –, bem como nas seguintes frases:
(6) «Ouviu-se ruídos durante toda a noite.»
(7) «Recitou-se versos de Pessoa.»
(8) «Vende-se casas.»
Deste modo, propõem os referidos puristas em alternativa a este tipo de estruturas as seguintes construções passivas de clítico, em que o verbo surge na forma plural:
(9) «Ouviram-se vários ruídos durante a noite.»
(10) «Recitaram-se versos de Pessoa.»
(11) «Vendem-se casas.»
Na opinião de Telmo Móia e João Andrade Peres (com a qual concordo inteiramente), «ambas as construções são aceitáveis, embora admitamos que se possa preferir uma ou outra por razões estilísticas». Chega-se a esta conclusão por dois motivos essenciais: «por um lado, a aceitação generalizada por parte dos falantes que o uso do clítico impessoal parece ter; por outro lado, o facto de não julgarmos haver razões – estruturais ou semânticas – para aceitar a construção com o clítico impessoal nuns casos e rejeitá-la noutros.»
Assim, e para tentarmos sistematizar, «podemos dizer que, se numa dada frase a forma verbal é plural, então só podemos estar perante um se passivo [razão pela qual considero, na linha do defendido pelo prezado consulente, que a proposta feita no citado concurso não me parece correta, devendo a opção válida entroncar na sugestão aqui apresentada – «podem-se descrever» ou «podem descrever-se»]. Por outro lado, se a forma verbal é intransitiva, então só podemos estar perante um se impessoal».
No que concerne «aos casos em que a forma verbal é transitiva e singular, pode verificar-se uma de duas situações: ou o segundo argumento do verbo é plural — caso em que não concorda com o verbo —, e estamos perante uma construção impessoal do tipo que referimos não ser aceite por alguns puristas [cf. (5)], ou o segundo argumento é singular [cf. (1)]. Admitimos duas possibilidades de análise estrutural deste último tipo de frases – como construções passivas (em que um argumento interno – neste caso, um livro encadernado – é sujeito) e como construções impessoais (em que temos um sujeito indeterminado e o argumento interno é complemento direto). Podemos, pois, dizer que frases como (1) são estruturalmente ambíguas. Trata-se, no entanto, de uma ambiguidade estritamente sintática, que não tem consequências ao nível semântico, já que a informação veiculada é a mesma nas duas construções» (op. cit., p. 238).
Tendo em conta, portanto, o raciocínio exposto, resta-me referir que, numa visão mais lata (isto é, menos purista) do funcionamento da língua portuguesa, julgo que a construção «pode-se descrevê-las» deverá ser aceite, o que não invalida, como é evidente, o erro de apreciação que terá sido sustentado no concurso público referido pelo consulente, pois, ainda fundamentados no exposto, efetivamente, parece não haver dúvidas de que a formulação «podem ser descritas» é passiva.