Obrigada, prezado consulente, pelas suas palavras amáveis. O Ciberdúvidas congratula-se por, e com, cada consulente a quem o serviço prestado possa ser útil. Vale, porém, a pena dizer que quem está deste lado não é detentor da verdade. Somos, tão-somente, uma equipa amante da língua portuguesa, que muito tem aprendido com os nossos consulentes.
A si, em especial, o meu muito obrigada pelo rigor e pela clareza com que apresenta a sua dúvida, bem como pelo cuidado em identificar correctamente as fontes consultadas, indicando para cada referência a página.
A sua questão implica a abordagem de dois ou três aspectos.
Em primeiro lugar, a classificação de complemento indirecto (CI) constante da Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra. Estes autores revelam, sobretudo, uma sensibilidade que tardou em cimentar-se. Em boa verdade, parece-me que ainda se não instalou. Falo do facto de serem, tradicionalmente, considerados circunstanciais muitos complementos que não o são de todo (e uso a nomenclatura tradicional para facilitar, neste momento, a explicitação…).
A classificação dos verbos em transitivos e intransitivos e aqueles em transitivos directos e indirectos, em acumulação ou não, terá levado os autores à interpretação que apresentam. Com efeito, se temos de optar entre complementos essenciais e complementos circunstanciais, fazendo aqueles parte integrante e obrigatória da frase e sendo estes meramente ocasionais, o que fazer com «a Lisboa» na frase «Vou a Lisboa»? Não é de certeza, contrariamente ao que nos ensinaram, um complemento circunstancial, pois sem ele a frase não está completa! Como designar então este complemento? Os autores em análise associaram-no ao CI, por, como ele, estar ligado ao verbo através de preposição. Não tiveram em conta a especificidade semântica do CI… Outros autores, considerando essa especificidade, preferem falar de complemento oblíquo, ou de complemento relativo. Uma corrente que foi ganhando força entre nós designa-o complemento preposicional, distinguindo-o do CI pelo valor semântico. É esta a linha seguida pelos autores da TLEBS. Assim, em frases como «Duvidava da riqueza da terra» ou «Gosto de livros», há um complemento preposicional, respe(c)tivamente, «a riqueza da terra» e «de livros».
Em segundo, lugar importa saber qual é a preposição que introduz o CI. Será que há, sintacticamente falando, ou seja, respeitando o “código genético” do verbo, outra preposição, para além de a, que possa ocupar a posição de introdutora de CI? E se não há, como classificar «para a Maria» em frases como a que o consulente apresenta e que repito como (1)?
(1) O meu amigo pintou esse quadro para a Maria.
Preposições que introduzem o complemento indirecto
Na base de dados de apoio à TLEBS nada se explicita sobre este assunto, mas aparece apenas a preposição a nas frases que servem de exemplo… O mesmo acontece na Gramática da Língua Portuguesa de Mira Mateus e outras. Cunha e Cintra não são aqui fonte pertinente dada a interpretação que fazem de CI; Evanildo Bechara – para quem a distinção que a TLEBS faz entre complementos (obrigatórios) e modificadores (acessórios) se materializa em complementos e adjuntos – na Moderna Gramática Portuguesa, edição revista e ampliada, Editora Lucerna, 2001, diz o seguinte nas págs. 422 e 423:
«… Cabe insistir que a preposição que introduz o complemento indireto é a; muitas vezes, parece que, nesta função, se acha a preposição para, já que a e para se alternam em muitos esquemas sintáticos mas não quando se trata do complemento indireto, o que só raramente acontece:
Alguns alunos compraram flores para a professora.
Se prestarmos atenção, para a professora do exemplo não introduz o termo que funcionaria como complemento indireto, e a prova disto está na possibilidade, na referida oração, de aparecer um complemento indireto:
Alguns alunos compraram flores ao florista para a professora.
Note-se que se ao florista e para a professora exercessem a mesma função de complemento indireto, deveriam aparecer coordenados mediante a conjunção e, como ocorre com todos os termos de igual valor gramatical. Não seria possível construir a seguinte oração:
Alguns alunos compraram flores ao florista e para a professora.
Diante de uma oração como a nossa
Alguns alunos compraram flores ao florista para a professora,
A pronominalização só pode ser comutada com o objeto indireto ao florista:
Alguns alunos compraram-lhe flores para a professora.
Mas não:
*Alguns alunos compraram-lhe ao florista.»
Bechara distingue, porém, usos em que consideramos estar perante um CI, mas que designa por «dativos livres», onde inclui (p. 424):
Dativos de interesse (no latim ‘Dativus commodi et incommodi): «Ele só trabalha para os seus.»
Dativo ético: «Não me mexam nos papéis.»
Dativo de posse: «Doem-me as costas.»
Dativo de opinião: «Para nós ela é a culpada.»
Num excelente artigo intitulado A Semântica do Objecto Indirecto em Português: um espaço cognitivo multidimensional, inserido na Revista Portuguesa de Humanidades, da Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Filosofia de Braga, vol. 3, ano 1999, pp. 63-99, Augusto Soares da Silva insere todos aqueles dativos, para além de outros que enumera, no conceito «Complemento Indirecto», de que distingue realizações prototípicas – que cumprem todos os pressupostos de um CI – de realizações periféricas – em que alguns aspectos se desviam do padrão estabelecido para o conceito em causa. Além disso considera ainda que muitos complementos indirectos periféricos se não incluem na estrutura argumental (valência) dos verbos a que se ligam:
«Formalmente, o objecto indirecto em português é um complemento do verbo que a ele se liga, indirectamente, por meio da preposição a, e também, embora já não propriamente da valência do verbo (sobretudo no que diz respeito ao português europeu) da preposição para.» p. 66
Define também o que entende por CI prototípico:
«O objecto indirecto prototípico remete para um cenário envolvendo um processo de transferência física plenamente realizado, um agente humano que intencionalmente realiza essa transferência, uma entidade material que é transferida de um lugar e do domínio de controlo de uma pessoa para outro lugar e para o domínio de controlo de outra pessoa e a funcionalidade benefactiva da transferência; e neste cenário ele é a pessoa a quem se dirige a transferência e que dela beneficia.
[…]
O objecto indirecto prototípico combina dois papéis temáticos (funções semânticas) logicamente independentes: Meta ou recipiente e beneficiário…» p. 70-71
Por outro lado, e apenas para ilustrar o facto de as características do CI não serem tão consensuais como poderemos imaginar, transcrevo um texto, em espanhol, extraído desta página:
«El complemento indirecto es una categoría gramatical que se discute si es propiamente sintáctica o semántica. De forma simple se puede decir que corresponde al beneficiario o receptor de la acción del verbo (caracterización semántica).
Van precedidos por la preposición a.
El sintagma precedido por la preposición para no es complemento indirecto, sino complemento circunstancial.
Por ejemplo, en la oración "han traido un sobre para Pedro" el para Pedro no es complemento indirecto, es complemento circunstancial, ya que no es sobre Pedro donde recae la acción del verbo. La oración carece de complemento indirecto. En cambio en la oración "han traido un sobre a Luis para Pedro" puede distinguirse que el complemento indirecto es a Luis y para Pedro complemento circunstancial de finalidad.
El objeto indirecto también se llama complemento indirecto o dativo (por el caso correspondiente en latín).»
Poderemos concluir que, prototipicamente, a preposição que introduz o CI é a preposição a. Os investigadores reconhecem, todavia, a existência de complementos tradicionalmente designados indirectos, mas que não ocupam a posição sintáctica de CI, enquanto complemento essencial pedido pelas características lexicais do verbo.
Características lexicais do verbo
O elemento que, numa frase, determina o número de complementos obrigatórios que essa frase deverá ter é o verbo, através do que chamei acima o seu “código genético”, ou seja, a sua especificação lexical, isto é, o tipo de construções que ele permite para gerar frases gramaticais e saturadas (com todos os complementos expressos). Assim, os verbos intransitivos são verbos de um lugar (o sujeito, ou argumento externo); os transitivos dire(c)tos (verbos de dois lugares); os transitivos directos e indirectos (verbos de três lugares).
Acresce que cada verbo pode, dependendo do contexto em que surge, ter um, dois, ou três lugares.
Retomando a frase (1), o verbo pintar pode ser, segundo Celso Luft, no Dicionário Prático de Regência Verbal, São Paulo, Editora Ática, 2002 (a terminologia usada é, em alguns casos, adaptação minha à TLEBS):
Transitivo directo: pintar um quadro;
Transitivo directo e preposicional: pintar um quadro na imaginação;
Transitivo directo com predicativo do complemento dire(c)to: pintam o João (como) um génio;
Intransitivo: o João pinta;
Pronominal, transitivo indire(c)to e preposicional: o nervosismo pintou-se-lhe no rosto. (p. 405)
Repare que este último exemplo, cuja frase retirei do autor referido, pode ser parafraseado por duas frases:
(2) O nervosismo pintou-se no rosto ao João/a ele.
(2.1) O nervosismo pintou-se no rosto do João/dele.
Se em (2) estamos perante um complemento indire(c)to, em (2.1) já não se trata de um CI!
Voltando à frase em apreço, que repito como (3), creio que estamos perante um dativo benefactivo [a Maria beneficia com a acção do sujeito], ou de interesse.
(3) O meu amigo pintou esse quadro para a Maria.
(3.1) O meu amigo pintou-lhe esse quadro.
Considerando tudo o que disse atrás, tenho dificuldade, porém, em afirmar que se trate de um complemento exigido pela estrutura argumental do verbo. No entanto aceito a frase (3.1)!
A interpretação de Inês Duarte, ao considerar este grupo preposicional como oblíquo adjunto, é sintáctica e explicita a consciência de que não é um argumento do verbo. Seguindo a linha de Bechara e de Soares da Silva, podermos dizer que é um dativo livre, ou um CI periférico, não valencial, como prefere este último.
Uma dúvida permanece, e prevalece, sempre que me é dado analisar exemplos deste tipo. O que fazer perante uma turma? Aquilo que faço, habitualmente, é concentrar-me no que é prototípico. Se, por um golpe de sorte, tiver alunos que dominem, inequivocamente, as situações prototípicas, então poderei abordar outras. Caso contrário, reflexões como a que aqui fica, só ‘inter pares’.