Lastimo, mas não concordo com a discordância do consulente Pedro F. Múrias.
Primeiro, porque é um despropósito acusar-me de ter insultado (era o que me faltava!...) quem quer que seja, ou o que quer que seja. Desde quando o substantivo aberração, neste ou em qualquer outro contexto, é um «insulto»?!
Aberração quer dizer «que se afasta das normas». Se eu tivesse qualificado o anglicismo "stande" de «inominável», como o fez o consulente, acaso teria sido mais apropriado, tendo em conta que «as normas» da língua portuguesa não aceitam palavras começadas por st ou por sp?
Há excepções, como sportinguista (e sportinguismo, já agora...)? Como excepções, porém, à índole da língua portuguesa, é assim que devem ser tratadas. Ou seja: são excepções que só confirmam a regra.
Ora a regra, na língua portuguesa – e esta é a minha segunda discordância de fundo com o consulente Pedro F. Múrias –, manda que todas as palavras iniciadas por st, originárias de outras línguas (a começar pelo latim), se convertam em es.
Meia dúzia de exemplos mais conhecidos: "stadium" deu estádio; "standardize" deu estandardizar e estandardização; "stereo" deu estéreo(fonia, etc.); “stigma” deu estigma; "stylet" deu estilete; e "stylistique" deu estilística.
O mesmo acontece(u) com as palavras, inglesas na sua maioria, iniciadas por sp: "sport" passou a desporto, e por aí adiante.
Repito: o caso de sportinguista e seus derivados são uma excepção que deriva do nome do clube português, em inglês: Sporting. É, pois, um precedente que não legitima aberrações, repito, como essa do "stande". Ou essoutras como “stique” ou “status”.
Não gostamos do estande, como propõem os dicionários brasileiros? Então, continuemos a escrever no original: "stand". É o que eu faço.
O que critico nesta e noutras soluções do dicionário que traz a chancela da Academia das Ciências de Lisboa é, exactamente, a incoerência de critérios. Tanto propõe a, repito, aberrante forma "stande" – e há outras similares, como "stafe", "spote", etc. –, como advoga para o inglês "stencil" o (bem) aportuguesado estêncil, juntamente com (nova aberração...) “stêncil”. Tanto se aportuguesa, bem ou mal, estes e outros estrangeirismos generalizadamente usados entre nós ainda na versão original, como se regista um sem-número de outros termos apenas na língua de importação. É o caso de "scone", de "scooter", de "spray", de "squash", de "star", etc., etc., etc. Já para não falarmos de outros vocábulos estrangeiros registados simplesmente na forma original, tal como feddayin, zoom, voyeur (e voyeurrismo...), etc., etc.
Por causa destas e de outras discrepâncias – que eu continuo a preferir chamar-lhes aberrações... –, houve e continua a haver vozes, muito mais autorizadas do que a minha, a lamentar as expectativas goradas com um dicionário que levou tanto tempo a concluir. E que, inclusive, mobilizou, anos a fio, fartos recursos financeiros públicos, para, depois, ainda por cima, vir a ser comercializado por uma editora privada a um preço exorbitante.
Entre essas vozes autorizadas, permito-me transcrever a seguir parte de um texto antigo de D’Silvas Filho, um dos consultores do Ciberdúvidas que mais e melhor se têm debruçado sobre o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea:
«Actualmente – D’Silvas Filho escreveu este texto em Novembro de 2000 –, há uma corrente que recomenda a `não-adaptação´ de termos estrangeiros quando há o perigo de adulterar a língua de destino. Se há esse perigo e se os termos estranhos são absolutamente indispensáveis na comunicação, sem substituto válido na `língua oficial portuguesa´, é preferível adoptar a grafia da língua de origem, com reserva de grifo ou de ser posta entre aspas. Acrescento ainda: com reserva também de utilização restrita.
«Ora, sem procurar ser exaustivo na avaliação dos termos [em causa], estranha-se já algumas das soluções adoptadas: (...) “stande” e “stresse” como adaptação de “stand” e de “stress” (além de aceitar as variantes brasileiras estande e estresse) e (...) “scâner” e “scone”, como adaptação de “scanner” e do mesmo “scone”.
«Acontece que, se analisarmos o extenso Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado também pela Academia das Ciências de Lisboa, em 1940, verifica-se, nesta obra, que não há uma única palavra a começar por st ou por sc. O mesmo acontece no Vocabulário Resumido da Língua Portuguesa, igualmente da Academia, publicado em 1970: isto é, não tem termos iniciados por st ou por sc. Por outro lado, por exemplo, o Dicionário Michaelis Inglês-Português tem 21 páginas de vocábulos iniciados por st e 8 páginas por sc.
«Os responsáveis pelo Dicionário Contemporâneo, da Academia das Ciências de Lisboa, meditaram neste facto e o que pretendem é uma mudança também na estrutura actual da nossa língua? Não receiam, por exemplo, que passem a ser incluídos no léxico da língua portuguesa uma profusão de neologismos estranhos, de origem inglesa, com letras iniciais st ou sc?
«[Por isso, vai] haver quem prefira continuar (entre aspas) a grafar estes estrangeirismos na língua de origem, ou, melhor, adoptar as soluções brasileiras. Repare-se que o mesmo Vocabulário Ortográfico, de 1940, tem cerca de 7 páginas de palavras iniciadas por est e 6 por esc (várias vindas do latim, iniciadas por st ou por sc, mas transformadas por adição, como é habitual na evolução deste tipo de palavras na nossa língua).»
Infelizmente, não se ficam por aqui as aberrações – como lhes chama, também, D’Silvas Filho – inclusas no dicionário orientado pelo Prof. Malaca Casteleiro. E cito, de novo, quem o estudou de fio a pavio:
«“Açúcar-cânde” (fora da norma); “aparthotel” (inaceitável o h interior); “cartoonista” (variante igualmente inaceitável de cartunista); “croissã” (/kruá/...); “entente” (/ãtã/...); “entrereunir”; “es-noroeste” e “és-sudoeste” (não existem, pura e simplesmente!); “toilete” (/tuá/...); etc.; etc.; etc.
«Porque o dicionário estabeleceu que a sequência oi passava a pronunciar-se /uá/, ou que en passava a pronunciar-se /ã/, ou, ainda, que o r intervocálico passava a ter o som /rr/, podemos deixar passar estas ousadias como já entradas na nossa língua?»
Obviamente que não podemos. Foi isso, afinal, o que me levou a responder como respondi à questão à volta do aberrante “stande”. Só me resta, por isso, subscrever o alerta final de D’Silvas Filho:
«A língua deve enriquecer-se com novas palavras desde que estejam bem formadas, que sejam efectivamente necessárias para os conceitos pretendidos e que não empobreçam a língua (não tendam a substituir, nesses e noutros conceitos, termos vernáculos mais adequados). O uso que adultere o nosso património linguístico não é nada soberano. Por isso, as adaptações de línguas morfológica e sintacticamente diferentes do português devem ser sempre feitas com a máxima precaução.»