Um texto literário pode recriar uma determinada realidade, uma época, uma situação. Nesse caso, falar-se-á de «recriação literária», uma vez que, pela ficção, se consegue representar um certo universo. E pode mesmo evocar (ou convocar) até outros textos e outros autores que serão objecto privilegiado do discurso. Lembremos o romance de Adriana Lisboa Um Beijo de Columbina, que se debruça tanto sobre Manuel Bandeira. Mas, neste caso, a narradora não pretende fazer um texto do tipo dos de Manuel Bandeira, mas a acção gira à roda de poemas de Bandeira, o que leva a que procure recriar as vivências desse poeta.
Penso que, ao falar-se em criar um texto do tipo de Um Apólogo de Machado de Assis, não se está a fazer uma recriação literária. É um novo texto que é criado e não recriado. Será, assim, uma outra criação literária que terá como modelo o texto de Machado de Assis. O fenómeno será o mesmo do da produção de Um Apólogo (Machado de Assis), pois no século anterior (séc. XVIII – em 1721) foi publicada uma obra póstuma de D. Francisco Manuel de Melo – Apólogos Dialogais – constituída por quatro apólogos (Relógios Falantes, Escritório Avarento, Visita das Fontes e Hospital das Letras), «obra de crítica de costumes com finura de observação, rigor de retratos e situações, humor cáustico e, aqui e ali, contida amargura […] de intenção moralista». (Biblos, Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. II).
E nunca se disse que o texto de Machado de Assis era uma recriação literária da obra de D. Francisco Manuel de Melo. Foi o fenómeno puro e dinâmico da intertextualidade que levou Barthes a referir a escrita como «compromisso entre a liberdade e uma recordação». De facto, «os textos detêm um potencial de memória praticamente infindável que se vai acumulando sob os modelos da identidade e da diferença».
E em todas as leituras que fiz sobre a intertextualidade não encontrei nenhum termo específico que definisse esse tipo de texto criado à semelhança de outro. Sei, sim, que «a par da noção de interdisciplinaridade – reservada cada vez mais à descrição comparatista dos contactos entre dois ou mais textos literários», Angenot (1983) usa o termo interdiscursividade «para identificar as relações que qualquer texto, oral ou escrito, mantêm com todos os enunciados ou discursos pertencentes a uma determinada série cultural».