Cumprimento-o, prezado consulente, e agradeço a leitura atenta da resposta que elaborei, bem como a possibilidade de retomar o assunto e de tentar esclarecer aspectos menos claros da resposta anterior, pelos quais peço desculpa.
Com efeito, ao justificar, e mesmo preferir, a forma feminina mesma que associei a arte, não era minha intenção assumir como incorrecta a frase que o consulente apresenta. Ela tem sentido ligeiramente diferente do que eu proponho pois a forma mesmo no masculino só pode, neste contexto, ser associada ao substantivo acreditar. Ora a expressão em si mesmo veicula uma ideia reflexiva, isto é, o pronome pessoal si projecta de algum modo a entidade designada sobre si própria. Na frase «A arte abstrai da morte, desconhece-a, com esse obstinado acreditar em si mesmo, que é o estigma de seu orgulho e de sua força», o facto de mesmo estar no género masculino leva-nos a associar o pronome – aliás toda a expressão em si mesmo – a acreditar, como se o substantivo acreditar projectasse a crença sobre si mesmo. Ora na interpretação que eu defendo em si mesma não se reporta a acreditar, mas sim a arte. Daí o feminino. Como também é a arte que se reportam os possessivos «seu orgulho» e «sua força»…
As suas questões relacionam-se com duas problemáticas:
1 – O género dos verbos quando substantivados. Quando um verbo assume, por derivação imprópria, a função de um substantivo, o seu género é sempre masculino. Quanto ao número, estes substantivos usam-se, normalmente, no singular, mas podem ocorrer no plural, como se exemplifica a seguir.
– Os falares regionais são interessantes.
– A região é conhecida pelos comeres típicos.
2 – A associação de mesmo, como reforço, a um pronome pessoal e respectiva concordância. A palavra mesmo, tal como próprio, pode vir associada a pronomes pessoais, assumindo o número e género da entidade a que o pronome se refere, como podemos verificar nos exemplos subsequentes, retirados todos do "corpus" do Centro de Linguística da Faculdade de Letras, disponível em: http://www.clul.ul.pt/frames.html:
«– Esta atenção dada aos tribunais, não sendo em si mesma um erro…»
«– Ora diga-me, mulher, foi vossemecê mesma que vendeu os brilhantes?»
«– Sentia-me mole e enjoada comigo mesma.»
«– Nos bebedouros ela mesma se enamorara da sua figura esbelta.»
«– As pessoas existiam para se iludirem a si mesmas e às outras.»
«– E muitos dos convocados perguntaram a si mesmos. Para que será?»
Nestes exemplos mesmo assume a função de um determinante ou adjectivo que reforça o sentido do pronome pessoal, bem como uma certa ideia de reflexividade que está subjacente a si.
Note-se, no entanto, que há situações em que mesmo assume uma função adverbial e, nesse caso, fica invariável, como acontece nos exemplos seguintes:
– Joana, ainda bem que a vejo. É consigo mesmo que eu quero falar.
– Manuel, ainda bem que o vejo. É consigo mesmo que eu quero falar.
– Ainda bem que os vejo. É com vocês mesmo que eu quero falar.
No exemplo que estamos a analisar não é esta segunda hipótese que está presente, pois mesmo funciona como adjectivo ou determinante. A questão que se coloca é saber qual é a entidade que em si mesmo representa. Embora reconheça que a proximidade de um verbo substantivado possa, num registo menos formal, ou em determinados contextos, atrair a concordância para o masculino, defendo que a palavra mesmo deve ir para o género e para o número da entidade a que esta palavra efectivamente se liga.
Analisando os restantes exemplos que apresenta, pode verificar-se que eles têm uma característica comum: são todos frases cujo sujeito integra um verbo substantivado. Além disso, o sujeito contém um complemento ou um adjectivo que, graças às características específicas dos verbos utilizados, se pode relacionar com o complemento ou nome predicativo desses mesmos verbos, mais do que com o verbo substantivado que serve de núcleo ao sujeito. Por essa razão defendo que, num registo formal, esse complemento, que integra o sujeito, deve concordar com a expressão que serve de complemento ou de nome predicativo do verbo:
«O falar consigo mesmo é característica dos filósofos.»
Consigo mesmo, embora ligado estruturalmente a falar – o que justifica o singular – não representa uma característica do substantivo falar, mas sim dos filósofos. Por isso eu escreveria:
– O falar consigo mesmos é característica dos filósofos.
Ou, porque esta frase pretende assumir uma generalização que é mais eficaz se estiver toda no singular:
– O falar consigo mesmo é característica do filósofo.
«É próprio dos bons alunos o ser atento.»
Num registo mais formal creio que a frase se deveria escrever:
É próprio dos bons alunos o serem atentos.
Também aqui a ideia de generalidade seria mais forte se todos os elementos estivessem no singular:
É próprio do bom aluno o ser atento.
«O aprender sozinho revela o espírito dos perseverantes.»
Sozinho, se pode ligar-se a aprender, pode também ligar-se a espírito, justificando-se, assim, o singular. Por seu lado se se quiser realçar as entidades que são perseverantes, então colocamos a palavra no plural:
O aprender sozinhos revela o espírito dos perseverantes.
Espero ter demonstrado por que defendo a concordância em género e número com as expressões que são efectivamente designadas pelo pronome, ou modificadas pelo adjectivo. No entanto, aceito que em registos menos formais essa concordância possa não ocorrer. O que faz com que, prezado consulente, todos os exemplos que apresenta estejam correctos, embora pertençam a registos diferentes.
Quanto à sua observação final, a partilha e troca de impressões só pode enriquecer-nos a todos e fazer-nos crescer, pelo que não só não me melindra a sua sugestão, como a agradeço.